Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Obra-prima do jornalismo apressado

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) vem divulgando, ao longo desse mês de janeiro, diferentes informações sobre os eleitores brasileiros consolidadas para dezembro de 2007. Na quarta feira (16/1), foi a vez da escolaridade do eleitor. Trata-se de dados de grande interesse público, sobretudo para políticos, partidos e outras entidades envolvidas no processo eleitoral no ano em que serão realizadas eleições municipais em todo o país.

Como não poderia deixar de ser, houve repercussão imediata na grande mídia. O principal telejornal da televisão brasileira, o Jornal Nacional da Rede Globo, deu matéria com a chamada ‘Mais de 6% dos eleitores brasileiros são analfabetos’, seguida do texto:

‘Mais da metade dos eleitores brasileiros não completou o ensino fundamental. O levantamento do Tribunal Superior Eleitoral mostra ainda que mais de 6% são analfabetos e pouco mais de 3% têm formação universitária. O Nordeste concentra o maior percentual de eleitores com baixo grau de escolaridade: 70% não completaram o ensino fundamental.’

No dia seguinte (17/1), os principais jornais de referência nacional trouxeram matéria sobre o assunto com os seguintes títulos:

** O Globo: ‘Maioria dos eleitores tem baixa escolaridade’

** Folha de S.Paulo: ‘51% dos eleitores não têm ensino fundamental’

** O Estado de S.Paulo: ‘57,96% dos eleitores têm baixa escolaridade’

** Jornal do Brasil: ‘Eleitores têm baixa escolaridade’

** Correio Braziliense: ‘Eleitores estudaram pouco’

O enquadramento predominante nas matérias salientava o ‘quadro dramático’ da baixa escolaridade dos eleitores brasileiros, expresso no fato de que a maioria deles ‘não conseguiu sequer completar o ensino fundamental’ e também nas enormes desigualdades regionais.

No Estadão e no Correio há também a opinião de dois cientistas políticos – versão impressa dos fast-thinkers de Pierre Bourdieu – interpretando os dados do TSE como indicadores de que ‘cria-se um ambiente pavimentado para quem quiser se eleger, se aproveitar’ e de que ‘esse tipo de eleitor [de baixa escolaridade] é mais suscetível à barganha. Qualquer oferta de tijolos, telhado, qualquer favor pode influenciar’ (sic).

Jornais comeram mosca

É necessário, no entanto, que se façam qualificações importantes sobre os dados do TSE e, sobretudo, sobre a forma de sua divulgação pela grande mídia.

1. Primeiro, o leitor atento deve ter observado que nas matérias de quatro dos cinco jornalões brasileiros – O Globo não julgou necessário incluir a informação – havia, apenas de passagem, uma advertência fundamental feita pelo próprio TSE: ‘os dados podem apresentar defasagens porque a escolaridade foi declarada no ato do alistamento’.

O que isso significa exatamente?

Ao contrário das informações sobre faixa etária, atualizadas anualmente a partir da data de nascimento do eleitor, a escolaridade para o TSE continua a ser aquela declarada quando se faz o alistamento eleitoral. Quem se alistou com 18 anos (até 1988) ou com 16 (desde a Constituição de 1988), quando – no limite – se alcançava o 2º grau (hoje, ensino médio), mesmo que tenha prosseguido nos estudos (concluído o ensino médio e/ou o superior) aparecerá nas estatísticas com a escolaridade declarada no alistamento, salvo se procurar o TSE para atualização dos dados. Vale dizer, os dados do TSE sobre escolaridade do eleitor são apenas indicativos, não podem ser considerados como estatisticamente confiáveis.

Ao analisar as eleições presidenciais de 2006, o sociólogo Marcos Coimbra, diretor do Instituto Vox Populi, atribui às mudanças nos padrões de escolaridade a primeira e mais fundamental razão para a inadequação do modelo de ‘formação de opiniões’ que prevalece entre nós. Valendo-se de dados do censo do IBGE e da PNAD, ele comenta que…

‘…na nossa primeira eleição presidencial moderna, apenas 20% dos eleitores tinha mais que o primeiro grau. Hoje, ultrapassam os 40%. Inversamente, a parcela com baixíssima escolaridade caiu de perto de 60%, para cerca de um terço do eleitorado. Em termos absolutos, tivemos, em 2006, mais de cinqüenta milhões de eleitores com, pelo menos, parte do segundo grau, com ele completo ou com acesso à educação superior, contra apenas dezoito milhões em 1989, nas mesmas condições’. [cf. quadro abaixo e Marcos Coimbra, ‘A mídia teve algum papel durante o processo eleitoral de 2006?’ in V. A. de Lima (org.); A mídia nas eleições de 2006; Perseu Abramo, 2007).

Escolaridade do Eleitorado – Brasil 1989 e 2005

BRASIL

1989

2005

Escolaridade

Absoluto

%

Absoluto

%

Até 4ª série

48741633

56%

47136619

36%

De 5ª a 8ª série

19837525

23%

32087755

24%

Médio

11981801

14%

37626761

29%

Superior

6052157

7%

14424707

11%

Fonte: IBGE/PNAD-1989/2005.

Da mesma forma, a sexta edição do Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF/Brasil), estudo realizado pelo Ibope em parceria com o Instituto Paulo Montenegro e a ONG Ação Educativa, divulgado em dezembro de 2007, revela significativo avanço em termos de alfabetismo funcional (ver quadro abaixo).

Evolução do Indicador de Alfabetismo Funcional

RESPOSTA

TOTAL

2001-2002

2002-2003

2003-2004

2004-2005

2007

BASE

12.006

4.000

4.000

4.002

4.004

2.002

Analfabeto

11%

12%

13%

12%

11%

7%

Rudimentar

26%

27%

26%

26%

26%

25%

Básico

37%

34%

36%

37%

38%

40%

Pleno

26%

26%

25%

25%

26%

28%

Analfabetos funcionais

37%

39%

39%

37%

37%

32%

Alfabetizados funcionalmente

63%

61%

61%

63%

63%

68%

As conclusões do estudo indicam:

‘Reduz-se a proporção de indivíduos classificados como analfabetos absolutos e no nível rudimentar de alfabetismo (equivalente, neste ano, a 7% e 25% da população na faixa etária pesquisada, ante 12% e 27% nas primeiras edições do INAF em 2001/2002). Já os níveis básico e pleno têm crescido solidamente: de 34% para 40% e de 26% para 28%, respectivamente no mesmo período. Esta evolução pode ser associada à crescente escolarização da população brasileira, que aumentou significativamente nas últimas décadas. A parcela de crianças e adolescentes entre 7 e 14 anos freqüentando a escola, por exemplo, praticamente se universalizou, graças ao maior acesso e permanência na escola’ [ver aqui].

Como se vê, ao não questionarem os dados do TSE e não contextualizá-los em perspectiva histórica, os jornalões deixaram de perceber que a grande notícia sobre a escolaridade dos eleitores no Brasil é o seu formidável avanço nos últimos anos e, inclusive, as importantes implicações desse avanço já observadas no comportamento eleitoral.

Leitura do mundo

2. Um segundo ponto que o leitor deverá ter observado é que, embora as matérias dos jornalões (e do JN) se refiram ao fato da maioria dos eleitores não haver conseguido completar o ‘ensino fundamental’, não existe nelas qualquer explicação sobre o que seja ensino fundamental. Na verdade, desde 2006 (Lei nº 11.274), o artigo 32 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação passou a ter a seguinte redação:

‘O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante: I – o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; II – a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; III – o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores; IV – o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social.’

O ensino fundamental completo, portanto, se refere hoje ao que antigamente se chamava de 1º grau, acrescido de mais um ano, isto é, um ano do antigo pré-primário, todo o antigo curso primário mais o antigo ginásio. Não é apenas saber ler e escrever, é muito mais do que isso.

3. Terceiro, e talvez mais importante, o leitor atento haverá notado que as matérias dos jornalões não fazem qualquer diferença entre escolaridade e capacidade cognitiva, de análise, do eleitor. Independente do fato de que a escolaridade se relaciona positivamente com maior articulação do pensamento e capacidade crítica, a ausência de instrução formal não pode ser identificada, sem mais, com a incapacidade de pensar e raciocinar de forma independente. O que se viu nas eleições de 2006, aliás, foi exatamente o contrário.

Desde a década de 1960, nosso maior educador, Paulo Freire, já chamava atenção para o fato de que mais importante do que ser alfabetizado, isto é, saber ler e escrever, era saber ‘ler o mundo’. Aliás, Freire mostrou que, muitas vezes, o processo de alfabetização formal (do tipo ‘Pedro viu a asa; a asa é da ave’ e ‘Eva viu a uva’) dificulta a aprendizagem da leitura do mundo, ao contrário de facilitá-la.

No mundo contemporâneo, a escola e a educação formal fornecem apenas parte do imenso conjunto de informações de que cada um de nós necessita para fazer o sentido do mundo, compreendê-lo e tomar as decisões do dia-a-dia, inclusive nos processos eleitorais.

Jornalismo apressado

No final das contas, as matérias sobre os dados divulgados pelo TSE revelam a pobre qualidade do jornalismo que, infelizmente, tem prevalecido na grande mídia brasileira: não se questionam nem se contextualizam as informações. Esse jornalismo apressado e pouco profissional, além de desrespeitar e informar mal ao leitor, certamente contribui para distanciar, ainda mais, a mídia brasileira de seu principal papel, que é servir ao interesse público.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)