Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Obrigado a torcer por Bezos

Não conheço um só jornalista que não gostaria de trabalhar em um jornal capaz de derrubar o homem mais poderoso do mundo, o presidente dos Estados Unidos, no caso, Richard Nixon.

É fácil imaginar, por isso, o tremendo impacto da notícia de que o jornal que perpetrou tal façanha, o “Washington Post”, fora vendido.

Minha primeira reação foi a de supor que se tratava de mais um grande passo no rumo tão alardeado do fim do jornal em papel. Afinal, só se vende uma marca tão importante se ela está à beira da falência. E, se até o “WP” pode falir, todas as demais publicações em papel também podem.

O “WP” podia não estar à beira da falência, mas vinha dando prejuízo há sete anos consecutivos. A família proprietária disse que o jornal poderia sobreviver mesmo que não fosse vendido, mas seria uma sobrevivência penosa.

A segunda reação foi tentar ligar o nome do comprador à sua atividade, para saber se não era um desses homens de negócio para quem notícias são meras commodities ou salsichas, sem alma ou história. No Brasil, os jornalistas temos amargas experiências com empresários assim, que levaram ao fechamento de publicações com alma e história.

Saber que o comprador se chama Jeff Bezos e é o dono da Amazon trouxe um segundo choque: como lembrou anteontem Carlos Eduardo Lins da Silva, ele é o homem que levou ao fechamento de incontáveis livrarias, incapazes de competir com o modelo da Amazon.

Outro universo

Fechou o círculo: a venda do “WP” mexe com duas paixões antigas, jornais em papel e frequentar as velhas e boas livrarias, elas também templos do papel.

Por isso mesmo, sou obrigado a torcer por Bezos, por mais má vontade que ele tenha despertado inicialmente em mim.

Explico: ninguém ainda inventou uma maneira de ganhar dinheiro com jornalismo on-line. Há vários ensaios, mais ou menos bem-sucedidos, mas nada que se equipare às fontes de ingresso com jornal-papel, por sua vez minguantes.

Essa é a crise existencial do jornalismo.

Ou, como prefere Emily Bell, em artigo no “Guardian”, “as notícias não são mais a indústria que um dia foram e já nem sequer são uma indústria. São um bem cultural cujo formato e forma de entrega têm que ser reinventados para um conjunto diferentes de necessidades e capacidades do consumidor”.

Muito bem. Bezos reinventou a venda de livros. Tem, então, credenciais para reinventar a venda de notícia. A julgar pelo pouco que disse sobre o tema, não será no papel, que ele crê que morrerá em duas décadas, mas em tablets e smartphones.

Por mais que tenha uma vida no papel (50 anos neste ano), estou preparado para o jornalismo em novos modos de entrega. O importante é preservar a qualidade, em qualquer meio.

Ou, voltando a Bell, a Bezos, vindo de um universo diferente, “lhe agradará estar em um mundo no qual o maior indicador de êxito é irritar, prejudicar ou, no melhor dos casos, derrubar um presidente e outros funcionários públicos?”.

Essa é a pergunta-chave. 

******

Clóvis Rossi é colunista da Folha de S.Paulo