A observação crítica, regular e prolongada, da imprensa, pode produzir uma situação ainda não descrita pelos estudiosos da mente humana, mas que tem potencial para batizar uma dessas síndromes de comportamento que as entidades da psicologia eventualmente reconhecem e catalogam. Trata-se de um estado no qual o observador se descobre tão distante daquilo que é apresentado pelo noticiário, que chega a se considerar um outsider, um excluído da compreensão geral do mundo midiatizado. Como alguém que persegue fantasmas.
Veja-se, por exemplo, relato publicado na edição de sexta-feira (21/2) pelo Globo: diz o jornal carioca que o ex-governador de São Paulo José Serra anda fazendo análises da situação econômica do Brasil que contrariam frontalmente a visão alardeada pelo seu partido, o PSDB, e reproduzida zelosamente pela imprensa. Diz o Globo que, durante teleconferência com consultores financeiros, na quinta-feira (20), Serra declarou que não vê nenhuma circunstância “calamitosa” nem “descontrole inflacionário e fiscal” no horizonte brasileiro.
Referindo-se às projeções para o crescimento econômico em 2014, Serra confrontou o que tem sido alardeado pelo senador Aécio Neves, provável candidato de seu partido à Presidência da República, ao dizer que o Produto Interno Bruto – que seus correligionários e a imprensa chamam de “pibinho” – não chega a ser uma “tragédia”. Para o ex-governador, “o PIB por habitante, se crescer 2% este ano, em termos per capita vai ser da ordem de 1,2%. Não é um desempenho negativo”, afirmou, dizendo em seguida não considerar isso “nada brilhante, nada desastroso”.
Habituado ao discurso hegemônico dos jornais, sempre reproduzindo a visão catastrofista segundo a qual a política econômica com forte protagonismo do Estado estaria conduzindo o país para o abismo, o leitor atento e crítico do noticiário haverá de produzir aquela pergunta cândida: mudou a economia ou foi Serra que mudou?
Tido por muitos como um economista talentoso, José Serra teria, afinal, se despido do discurso de candidato, obrigando-se a elaborar uma análise mais fria e menos partidária da realidade econômica?
Sem faro ou sem interesse
Essa pergunta só pode ser respondida pelo próprio personagem, e ele terá certamente muitos olhos e ouvidos dispostos a colher suas palavras, uma vez que sempre contou com inteira disponibilidade dos jornalistas – o certo seria usar a expressão subserviência. Mas o pensamento controverso de José Serra e sua surpreendente sinceridade são questões de foro íntimo, possivelmente desbloqueadas por sua condição de não-candidato.
Mas o que nos move aqui é a observação da imprensa. Fica, então, o observador diante da seguinte possibilidade: tendo, ao longo das duas últimas décadas, rezado em voz alta pela cartilha econômica do ex-governador, ex-senador e ex-ministro, será que os jornais vão rever sua visão da realidade brasileira?
Registre-se, por exemplo, que, se os indicadores econômicos não são uma tragédia, como repete diariamente a imprensa, os indicadores sociais apontam para uma evolução constante do bem-estar da maioria dos brasileiros, com o aumento da renda dos trabalhadores, a diminuição da pobreza e a redução da desigualdade.
O que teria impedido os outros dois jornais de circulação nacional de abrigar a nova visão de José Serra? Difícil acreditar que nem mesmo os supostamente bem informados colunistas de economia da Folha e do Estado de S.Paulo ignoravam a manifestação surpreendente do ex-governador – é mais provável que os editores dos dois jornais paulistas tenham considerado mais conveniente omitir essa informação de seus leitores.
Se, em uma hipótese, dois dos maiores jornais do país não são capazes de captar um episódio tão marcante quanto a surpreendente análise de um dos mais radicais opositores do modelo econômico vigente desde 2003, é de se suspeitar que a imprensa anda perdendo o faro.
Se, na outra hipótese, o observador concluir que os dois jornais tiveram acesso à manifestação de Serra mas resolveram omiti-la de seus leitores, que importância teria, afinal, a imprensa na formulação das opiniões?
Em ambos os casos, fica a desconfortável sensação de que estamos todos – leitores atentos e críticos – tentando entender uma ilusão, uma coisa que não existe de fato.
Há fortes indícios de que a chamada grande imprensa brasileira largou o jornalismo em algum lugar por aí.