Meses após a criação do cargo de ombudsman pela Folha de S. Paulo, há 20 anos, uma piada circulava nos meios jornalísticos: ‘O Estadão já tem o seu ouvidor, falta a Folha arrumar o dela’. O chiste dizia respeito à alegada tendência do primeiro ocupante do cargo, Caio Túlio Costa (1989/1991), de reiteradamente criticar o jornal concorrente ou de comparar a cobertura que o jornal dos Mesquita fazia de determinado assunto em relação à oferecida pela Folha.
O gracejo me veio novamente à cabeça ao ler a coluna do atual ombudsman da Folha, Carlos Eduardo Lins da Silva, publicada no domingo (1/8) e intitulada ‘A internet a serviço do jornalismo’. Como seu título explicita, nela são elencados, nas palavras do jornalista, ‘exemplos de como a internet pode contribuir muito positivamente para melhorar a qualidade do jornalismo e das relações entre a sociedade e seus governantes’.
Tais exemplos advêm do jornalismo norte-americano e não há qualquer correlação à atividade de imprensa no Brasil nem ao órgão em que Lins da Silva trabalha e que está incumbido de criticar, alegadamente em nome do leitor e do aperfeiçoamento do jornal. Esta omissão leva a curiosas distorções. Por exemplo: Lins da Silva afirma, corretamente, que ‘há quem enxergue na internet um inimigo do jornalismo. É um erro conceitual e estratégico’. Mas tal afirmação não é correlacionada a exemplos recorrentes de profissionais que alimentam tal anacronismo, facilmente encontráveis entre alguns colunistas do jornal, destacadamente na ‘nobre’ página A-2. Perde-se, portanto, uma oportunidade efetiva de agir de acordo com as prerrogativas do cargo, criticando objetivamente aspectos preconceituosos e datados vigentes em setores do jornal.
Embora haja os que defendem a licitude de tal prática, de um ponto de vista pessoal, não considere correto que um ombudsman ocupe uma coluna semanal com temas genéricos sem correlacioná-los às práticas do veículo em que trabalha. No caso particular do ombudsman da Folha, a tal discordância vem somar-se o receio de que a incursão por aspectos genéricos do jornalismo internacional funcione como sintoma de cerceamento das possibilidades de intervenção do ouvidor no jornal e/ou de esgotamento da disposição crítica do próprio Lins da Silva em decorrência do efeito de tais limitações, tornadas evidentes na forma como a Folha vem sistematicamente ignorando as objeções do ombudsman. Ou seja, de fatores que apontam para a exaustão do modelo de ouvidoria jornalística representado pela criação do cargo de ombudsman pela Folha de S.Paulo.
Marketing iluminista
A criação do ombudsman, em 1989, mostrou-se uma bela jogada de marketing, de grande repercussão, numa fase em que o jornal acabara de perder alguns dos profissionais que, em cerca de vinte anos, transformaram um diário pouco expressivo num dos líderes de venda e – em grande parte graças à postura da Folha durante a campanha pelas ‘Diretas já’ – de credibilidade, fazendo muita gente levar fé em seu lema de inspiração iluminista de que se tratava de um jornal a serviço do Brasil.
Ao contrário do que a campanha publicitária e o próprio jornal martelavam a cada oportunidade, não se tratava do primeiro ombudsman da imprensa brasileira. Certamente era a primeira vez que a denominação de origem sueca era aplicada a um profissional nativo, mas a atividade de analisar de forma crítica a própria imprensa já fora exercida antes, e na mesma Folha, por Alberto Dines, na coluna dominical ‘Jornal dos Jornais’, que durou de julho de 1975 a setembro de 1977, como aponta Celso Lungaretti, em texto repleto de informações valiosas sobre a experiência.
De qualquer forma, o caráter aparentemente institucional do cargo e um contrato com cláusulas que impedia o profissional que o exercesse de ser demitido – garantindo, ainda, sua permanência no jornal por um determinado período após o término das atividades de ouvidor – acabaram por afiançar a credibilidade da ‘inovação democrática’ junto ao público.
No início, tinha-se a impressão de que as críticas surtiam efeito: pareciam ocorrer alterações significativas, por exemplo, no relacionamento dos colunistas com determinados temas e um cuidado maior (embora ainda insatisfatório) com a interlocução com o leitor; as restrições do citado Caio Túlio Costa ao estilo pouco afeito a convenções de Paulo Francis – então considerado por muitos o principal articulista do país, com sua cultura enciclopédia, seu texto de alto nível e um estilo que prefigurava a moda neocon – foram o principal motivo por ele alegado para sua transferência para o Estadão, em 1990.
Seguiu-se um longo período durante o qual jornalistas de renome ou com a carreira em ascensão se revezaram no cargo, uns mais incisivos, outros mais parcimoniosos, uns agradando a gregos, outros desagradando a troianos, mas sem que provocassem grande celeuma (ver aqui a lista completa de ouvidores, seu tempo no cargo e a primeira e última coluna de cada um deles).
Figura decorativa
O caldo começou a entornar com a posse e a disposição crítica demonstrada pelo nono ombudsman, Mario Magalhães (2007-2008), que se recusou a compactuar com o ‘jornalismo partidário’ que a Folha insistia em praticar desde a posse de Luiz Inácio Lula da Silva. Seguiu-se uma queda-de-braço entre Redação e ombudsman, culminando com a decisão daquela de restringir ao ‘público interno’ a circulação da crítica diária. Para Magalhães, foi o estopim e ele não renovou o contrato, tornando-se o primeiro ombudsman do jornal ‘a deixar o posto por não compactuar com sua descaracterização e esvaziamento’, nas palavras de Lungaretti.
Sua substituição por Lins da Silva inicialmente causou apreensão. Embora se tratasse de um profissional com um currículo jornalístico e acadêmico dos mais respeitáveis, temia-se que o fato de assumir o cargo com suas funções originais parcial mas gravemente reduzidas, somado à relação de proximidade com o jornal, pudesse significar uma postura de anuência para com o jornalismo praticado pela Folha, frequentemente acusado de tendencioso e antiético. Afinal, quando o diário dos Frias criou o cargo de ombudsman, em 1989, Lins da Silva havia acabado de publicar em livro sua tese de livre-docência, sob o título de Mil Dias: Os bastidores da revolução em um grande jornal e a ‘orelha’ do livro o apresentava aos leitores como ‘um dos líderes da equipe que provocou profundas transformações na Folha de S. Paulo (onde é diretor-adjunto de redação)’. São precisamente tais transformações – em relação às quais a criação do cargo de ombudsman é uma espécie de culminância –, enfocadas criticamente como um processo de profissionalização da produção jornalística em todos os níveis, incluindo o ético, o tema do livro.
As suspeitas em relação ao novo ombudsman logo se revelaram infundadas, com Lins da Silva assumindo uma postura crítica em relação não apenas a questões mais comezinhas, mas a episódios extremamente graves como a utilização, em editorial, do neologismo ‘ditabranda’ para se referir à ditadura militar, o ataque aos professores Maria Victoria Benevides e Fabio Konder Comparato, e a utilização de ficha policial falsa da ministra e pré-candidata Dilma Rousseff em reportagem sobre o suposto planejamento de um sequestro que nunca ocorreu.
Posição não surte efeito
O problema é que a postura correta e incisiva do atual ombudsman não tem surtido efeito algum, com a Redação ignorando de forma olímpica o resultado de suas análises e suas objeções. É motivo passível de constrangimento não apenas para o próprio Lins da Silva, mas para o leitor, logrado em sua representação junto ao jornal, a manutenção do ombudsman como mera figura decorativa.
Assim, só me resta concordar com Lungaretti quando, em outro artigo, publicado em seu blog em 31/07 e desta feita acerca do ‘caso Sarney’, afirma:
‘Infelizmente, os leitores há muito deixaram de ser representados no jornal, que só mantém a seção do ombudsman para não passar recibo de que sua arrogância olímpica é incompatível com os limites que jornais mais sérios impõem a si próprios. Criou tal seção, apresentou-a como um grande avanço na democratização dos meios de comunicação, depois arrependeu-se do que havia feito e a esvaziou, mantendo-a apenas como fachada.
Então, de nada adianta Carlos Eduardo estar sempre com a posição correta, salvo em benefício de sua biografia como profissional de dignidade exemplar. Mas, a única obrigação da redação da Folha tem sido a de escutar pacientemente suas ponderações; depois, age como bem entende’.
Em decorrência das constatações elencadas acima, duas questões se impõem:
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Por que um profissional de primeiro nível e um homem público da estatura ética de Carlos Eduardo Lins da Silva se presta a tomar parte dessa pantomima?**
Ombudsman, para quê?******
Jornalista e cineasta, é doutorando em Comunicação pela UFF; seu blog