Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O nacionalismo basco visto pela mídia

Algo interessante de se notar na cobertura da mídia brasileira nas questões relativas à ETA – fora a mais completa ignorância relativa ao assunto – é a forma tendenciosa e acrítica pela qual noticia o que acontece no País Basco, sem falar no parágrafo perpétuo em quase toda notícia, descrevendo que a ETA matou não sei quantas pessoas etc… A tentativa é clara: denegrir a imagem não só da ETA, mas de todo o movimento nacionalista basco, reduzir tudo ao mesmo denominador, chamar tudo de “terrorismo”.

Nenhuma linha sobre o movimento nacionalista, sobre o franquismo, guerra suja… Nenhum artigo maior explicando o que efetivamente quer a ETA e as razões para seu surgimento e luta até os dias de hoje… Tudo se resume ao número de vítimas. Mas nunca às vítimas do Estado, dos grupos de extrema-direita. A Espanha é a vítima inocente; os bascos são os terríveis assassinos. É a proposital e intencional “confusão” dos meios de comunicação que buscam criar a – falsa – imagem de que os bascos e sua luta por independência são terroristas que professam ideologia de ódio.

Ditadura sanguinária

As linhas do tempo publicadas pelos jornais são grotescas. Este da Folhadescreve três míseros eventos relacionados às ações da ETA antes da “democracia” chegar à Espanha, no fim dos anos 70. Nenhuma citação a homens da ETA que morreram e que até hoje são lembrados como heróis, pois lutavam contra uma ditadura. Txiki, Argala, luta contra o franquismo, como o grupo era aclamado e respeitado mesmo internacionalmente… Mas um festival de besteiras com a clara tentativa de demonizar o grupo.

1959 – A ETA é formado durante a ditadura do general Francisco Franco na Espanha para lutar pela independência basca.

1968 – O ETA realiza seu primeiro assassinato. A vítima é Melitón Manzanas, chefe policial na cidade basca de San Sebastián.

1973 – O premiê Franco Luis Carrero Blanco morre quando seu carro passa junto a explosivos colocados pelo ETA em Madri.

1980 – Em um ano sangrento, o ETA causa a morte de quase 100 pessoas, apesar da volta da democracia na Espanha.

A ETA, até 1980, aparentemente, não fez quase nada. Para que citar que Carrero Blanco era a escolha de Franco para continuar sua ditadura, que era um carniceiro? Ou por que não esclarecer que Manzanas era um ex-agente nazista, um conhecido torturador e assassino?

Há de se lembrar que a ETA nem sempre foi “um grupo terrorista”, mas um grupo que lutava contra uma ditadura sanguinária e opressora e que contava com amplo apoio da população não só basca, como também espanhola e até internacional. E ponto final. Chegando em 1980, novamente o grotesco: a ETA sanguinária contra a pobre e indefesa Espanha. A mesma Espanha que financiava grupos de extermínio de extrema-direita, como os GAL, BVE ou AAA. Financiados pelo governo “socialista” de Felipe González, é sempre bom recordar.

Violência nonsense

Este FAQ da Folha chega a ser cômico. Vejam o que é a ETA:

“O que é o ETA?

O ETA (Euskadi ta Askatasuna, ou País Basco e Liberdade) luta por um Estado basco independente no norte da Espanha e no sudoeste da França.

O grupo foi fundado há mais de meio século, durante a ditadura do general Francisco Franco, que proibiu o uso da língua basca.”

Isso mesmo, a ETA foi fundada de birra porque Franco, o poderoso, proibiu a língua basca. Sim, só isso.

Já o Estadão é difícil de definir:

“Mais de cinco décadas de luta

1959

ETA surge no governo Franco

Dezembro de 1973

Premiê Franco Luis Carrero Blanco é morto em atentado

Dezembro de 2006

Zapatero suspende processo de paz após ataque em Madri

Março de 2010

Policial francês morre após suposto atentado da ETA”

Não vale nem entrar no mérito de que a maioria dos artigos são mera reprodução/tradução das agências, sem nenhum aprofundamento. Quando, aparentemente, há algum acréscimo, este se limita à boa e velha Wikipédia e ao parágrafo perpétuo da violência nonsense.

Manipulação está também nos títulos

Sempre, ao longo dos artigos, os jornais brasileiros resumem o que é a ETA, de diferentes formas, mas sem que isto signifique dar um sentido diferente:

Folha2
No passado, o ETA – responsável por mais de 820 mortes em sua campanha de violência em 40 anos – declarou duas tréguas, mas ambas foram posteriormente levantadas.

Folha3
O grupo matou mais de 850 pessoas desde 1968, tipicamente usando carros-bomba e tiroteios.

JB: Folha 1
O ETA, considerado uma organização terrorista pela União Europeia (UE), é responsável pela morte de 829 pessoas em mais de 40 anos de violência pela independência de Euskalherria, uma “grande nação basca” formada pelo País Basco espanhol, a vizinha região de Navarra e o País Basco francês.

Estadão
O ETA busca uma região independente basca no norte da Espanha e sudoeste da França. O grupo é considerado uma organização terrorista pela União Europeia e pelos Estados Unidos. O ETA já matou mais de 825 pessoas desde o final da década de 60.

G1
Responsável por cerca de 850 mortes em quatro décadas de luta pela criação de um Estado Basco, numa região situada a norte da Espanha e sul da França, a organização vem sendo enfraquecida pela prisão de muitos de seus líderes nos últimos anos.

O que se vê é uma prática de copiar e colar e/ou de se limitar a traduzir o que vem de agências, de forma absolutamente acrítica. O jornalismo, não se sabe onde foi parar. Mas a manipulação está também nos títulos, nas chamadas das notícias que, em alguns casos, beiram o absurdo mais completo.

Falta de noção

Desde um discutível “Cessar-fogo anunciado por grupo basco ETA é visto como ‘insuficiente’ e ‘ambíguo’”da Folha até um “Partidos espanhóis não se convencem com anúncio de trégua do ETA”de O Globo, vai uma diferença gritante. Mas ambos são tendenciosos e nem de longe representam a verdade. Mas não há qualquer interesse pela verdade.

O primeiro título descarta a obviedade da maioria dos partidos bascos– Ezker Abertzalea, Aralar, EA, Alternatiba, partes do PNV, notadamente Joseba Egibar, e o presidente do PSE-EE/PSOE, Jesús Eguiguren –, além de dezenas de organizações que receberam com entusiasmo o anúncio da ETA; o segundo mente ao dizer “partidos espanhóis” quando, na notícia, verificamos que constam apenas PSOE e PP e toma como negativa uma declaração neutra da IU.

Os jornais desprezam tanto a opinião pública basca, quanto as dezenas de organizações envolvidas no processo. Aliás, é interessante notar que a opinião dos espanhóis costuma ter mais validade que a dos bascos quando a imprensa sai atrás de depoimentos e base… Mas, o melhor sempre deve ser deixado para o final e nada poderia ser pior do que a notícia dada pelo Estadão, sobre a marcha convocada em Bilbao por 44 organizações nacionalistas para pedir por paz e respeito aos direitos humanos:

“Manifestantes fazem passeata pró-ETA na Espanha”

Sim, “passeata pró-ETA”.

Presentes na marcha, convocada, inclusive, por um ex-conselheiro de Justiça do País Basco, estavam parlamentares do Eusko Alkartasuna, da organização Lokarri e de diversas outras organizações.

A falta de noção e limites do jornalismo brasileiro é simplesmente lamentável.

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Jornalista, blogueiro e mestrando em Comunicação, São Paulo, SP