O maremoto pegou os países do Oceano Indico de surpresa. Não possuíam sistemas de detecção de cataclismos e não puderam avisar as populações litorâneas para procurar abrigo em lugares mais altos. Mas se porventura possuíssem algum tipo de alarme, ousariam assustar os milhares de turistas que lotavam os resorts na temporada mais quente do ano? Correriam o risco de produzir um alarme falso e provocar milhares de cancelamentos em aviões e hotéis?
Já surgiram diversas teorias conspiratórias, George W. Bush naturalmente aparece na maioria delas como o principal culpado. Se tivesse assinado o Protocolo de Kyoto os deuses certamente refreariam a ira e diminuiriam o tamanho das ondas que mataram cerca de 150 mil pessoas.
A mídia precisa de réus e bodes expiatórios, sobretudo quando os mediadores não têm apetite ou competência para oferecer explicações, informações ou reflexões mais aprofundadas. Apesar da caça aos culpados pelo tsunami nenhum jornal ou revista teve a coragem de discutir os efeitos predatórios do turismo de massa.
Sem os paraísos desconhecidos no mundo subdesenvolvido (onde o dólar mesmo enfraquecido vale ouro), como enganar as multidões de europeus e americanos (do norte e do sul) que necessitam do exotismo para sentirem-se seguros e superiores?
Fragilidade desvendada
Marco Pólo, Vasco da Gama, Fernão de Magalhães ou Cristóvão Colombo jamais poderiam imaginar que um dia seria possível viajar sem geografia, apenas com roteiros de compras na mão. Os cadernos de viagens e os suplementos de turismo fazem exatamente isso. Na realidade não vendem viagens, vendem transporte e hospedagem. Viajar é algo mais complicado, exige leitura.
A mídia de turismo jamais falará em tsunamis, terremotos, dilúvios e tufões. Seu negócio é o sonho, pesadelos e realidade são outro departamento. Precisam produzir anúncios e paisagens maravilhosas – de preferência com toques eróticos – para vender passagens e pacotes que ajudarão a tirar do buraco as empresas aéreas, as redes de hotelaria e, sobretudo, a mídia.
A tal da ‘indústria sem chaminés’ só fabrica ilusões – de sossego ou aventura, de felicidade ou prazeres. Dos 150 mil mortos, talvez cerca de cinco mil fossem turistas, o restante aglomerava-se no litoral à espera do progresso turístico capaz de tirá-los da miséria. Agora as bússolas vão apontar para outras paragens – talvez o nordeste brasileiro, o Maghreb, algum pedaço da América Central, a África ocidental ou, quem sabe, a ilha do Diabo na Guiana ou a de Paquetá, na baía de Guanabara.
O tsunami desvendou mais uma vez a fragilidade do esquema operacional da nossa mídia. Nos feriadões, nas férias de verão, nas festas de fim de ano e Carnaval evidenciam-se em toda a extensão o enxugamento do pessoal, do papel e o descaso pela qualidade da informação.
Duplo sensacionalismo
A Folha de S.Paulo decidiu que no domingo (26/12) o seu leitor não merecia ler o nobilíssimo caderno Mais! ou a chatíssima revista ilustrada. Mas o leitor paga por essas atrações – o leitor que se dane ou vá queixar-se ao bispo. Tudo bem, o tsunami só seria noticiado no dia seguinte.
Mas, nos dias seguintes, com as notícias sobre a maior tragédia natural dos últimos 50 anos, os jornais estavam quentes por fora e mirrados por dentro. Certos de que o intervalo entre o Natal e o Ano Novo seria parco em informações, os jornais programaram edições reduzidas e plantões nas redações. Apostavam que seus leitores nobres estavam nas praias, nas fazendas, em Paris ou numa praia da Tailândia.
Domingo seguinte (2/1), a Folha repetiu a façanha: suprimiu os mesmos cadernos. Mesmo que quisesse não poderia produzir um Mais! dedicado ao tema das catástrofes – as equipes estavam de folga e não havia substitutos.
Com a fartura de informações transmitidas por agências e veículos internacionais ninguém foi furado, mas o material publicado no Brasil – comparado com a imprensa internacional – saiu apertado, tosco e mal editado.
Uma gafe na paulicéia merece ser citada como paradigma da improvisação: enquanto na sexta (31/12), na última edição do Estado de S.Paulo (pág. A 11), dizia-se que ‘Tribos aborígenes sobrevivem’, no mesmo dia, com destaque ainda maior (manchete de página, pág. A-11) a Folha proclamava: ‘Populações nativas de ilhas indianas correm o risco de ter sumido – Mar pode ter submergido culturas inteiras’.
Qual dos dois sensacionalismos é o correto? A Folha não acusou o erro e o Estadão nem deve ter reparado. Aparentemente, os aborígenes se salvaram porque não querem saber de turistas nem de praias paradisíacas. Preferem lugares altos e distantes.
Há que rezar
A Folha foi o único dos três jornalões a despachar um jornalista da sede para cobrir a tragédia in loco. A primeira matéria da repórter Fabiane Leite, em Phuket e Phangnga, Tailândia, é impressionante. Descreve o seu trabalho carregando cadáveres, obrigada a ajudar. ‘Não havia tempo para tristezas’, comenta. A Folha concorda: impassível, incapaz de refletir a emoção da repórter, publicou a chamada lá embaixo, nos porões da primeira página, lugar das tragédias velhas – a da boate em Buenos Aires era mais quente.
Veja (nº 1.886, 5/1/05) desperdiçou a oportunidade de fazer uma edição histórica como a do massacre terrorista na escola de Beslan. Havia anunciado que não sairia no Natal (como o fazem diversos semanários), portanto o tsunami com todos os seus horrores seria seu na primeira edição do ano. Não foi: a matéria é mirrada (apenas 6 duplas), sem elementos novos, convencional. Salvou-se a foto da capa, excepcional. O editor de fotografia (ou de arte), tal como aconteceu com a capa de Beslan, soube encontrar naquela montanha de fotos horripilantes, a mais tocante. A mesma usada pelo Economist.
Os cronistas-vedetes ofereceram charmosos vexames. No domingo (2/1), o impagável Luis Fernando Verissimo resolveu tratar do tsunami e registrou que no momento em que escrevia havia a notícia de 20 mil mortes (cifra registrada nos jornais da terça-feira anterior). Cinco dias depois, quando a matéria foi publicada (O Globo, pág. 7), o número de mortos chegava a 150 mil. Crônica também é informação – sim ou não ?
‘Trailer do Apocalipse’ foi título de uma palpitante matéria de página inteira do Estadão (domingo, 2/1, pág. J 8), assinada pelo veterano crítico de cinema e ensaísta Sergio Augusto, onde comenta o novo romance-catastrófe de Michael Crichton, State of Fear, lançado há dias nos EUA, sobre terrorismo ambiental. Confessa que não o leu, viu a resenha na internet, mas o relaciona com o filme O Dia Depois de Amanhã em que um tsunami transforma Nova York numa Atlântida.
Como o romance nada tem a ver com o filme e o primeiro terço do texto narra uma situação imaginária vivida por alguém que estaria comprando o livro de Crichton para lê-lo nas ilhas Maldivas, antes do tsunami, o pobre do editor não teve outra alternativa: sapecou uma foto em seis colunas com aquela família de suecos que conseguiu antecipar-se à onda gigante. E para esquentar pinçou no subtítulo uma frase do texto: ‘A tragédia na Ásia pega no contrapé o discurso antiambientalista da era Bush’.
Precisamos rezar para que não aconteçam mais tsunamis. Por inúmeras razões.