Antes de começar a escrever na manhã desta quarta-feira (10/12), olho debaixo da mesa, abro as portas dos armários, tiro os livros das estantes, tomo todos os cuidados para me certificar de que não tem nenhum agente secreto à espreita querendo cercear minha liberdade de expressão.
De onde ressurgiu de repente esta síndrome de pânico da censura, que desaparecera da minha vida em 1975, quando o general-presidente Ernesto Geisel fez o favor de tirar seus homens das oficinas do centenário Estadão, onde eu trabalhava e eles por sete anos cortavam as matérias que a gente escrevia?
Acho que fiquei muito impressionado com as ameaças que ouvi de alguns colegas na noite da entrega dos prêmios aos “Cem mais Admirados Jornalistas Brasileiros”, uma iniciativa das empresas Jornalistas&Cia. e Maxpress, baseada numa pesquisa feita junto a 2 mil executivos de Comunicação Corporativa num universo de 55 mil profissionais em atividade no país.
Segundo estes profissionais admirados e premiados que, sem citar fatos nem entrar em maiores detalhes, fizeram discursos inflamados sobre a gravidade do momento para a nossa profissão, diante das ameaças governamentais à liberdade de imprensa e expressão, a volta da censura estava logo ali na esquina, com as tropas só esperando uma ordem para invadir as redações, como fizeram na noite de 13 de dezembro de 1968 no Estadão, quando boa parte dos 600 convidados que lotavam o salão do Clube Homs, na avenida Paulista, nem havia nascido ou não tinha a menor ideia do que foi o Ato Institucional nº 5.
Em preto e branco
A partir do alerta sobre os perigos iminentes feito por um colega de Brasília, cujo nome não me lembro, vários outros premiados viram-se como que na obrigação de também tocar no assunto, na mesma linha de editoriais e colunas publicados nos últimos tempos pela imprensa familiar tucana, na linha de “o preço da liberdade é a eterna vigilância”, a máxima do udenismo que voltou à moda na recente campanha eleitoral.
De onde tiraram isso? Não encontro nenhuma razão objetiva, nenhum fato novo concreto, qualquer sinal de que a liberdade de imprensa esteja correndo perigo no Brasil, um país que vive hoje o mais longo período democrático e de pleno respeito às liberdades públicas da nossa História.
Gostaria que me citassem um só caso em que a liberdade dos jornalistas e das suas empresas sofreu qualquer restrição por parte do governo federal, direta ou indiretamente, desde a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em janeiro de 2003, quando eu era o Secretário de Imprensa e Divulgação da Presidência da República.
Já naquela época, qualquer tentativa de se debater a necessidade da criação de um novo marco regulatório para as comunicações sociais, que vivem a mais profunda revolução desde a invenção da prensa de Gutenberg, faz mais de 500 anos, era imediatamente tachada de tentativa de controlar a imprensa e promover a volta da censura. Só para lembrar: a legislação em vigor data do tempo da televisão em branco e preto, lá nos idos dos anos 1960. Para os barões da mídia, que continuam os mesmos daquele tempo, é simplesmente proibido tocar neste assunto.
“Sentido dúbio”
Pensei em falar disso quando me chamaram ao palco, já perto da meia-noite. Mas, como cada “admirado” só tinha 15 segundos para os agradecimentos, e eu estava acompanhado de alguns dos meus netos, todos nós com sono, achei melhor deixar para lá, e curtir o resto da festa.
Só resolvi escrever sobre este assunto agora, depois de ler nota publicada no Observatório da Imprensa pelo meu amigo Luciano Martins Costa, um dos premiados, sob o título “Quem são os jornalistas brasileiros?”. Faço minhas as palavras do sempre brilhante colega, que também não entrou na onda do efeito manada assustada daquela noite, e foi o único a registrar o que aconteceu em sua coluna:
“Na hora dos agradecimentos, foi das mesas onde se concentravam figuras conhecidas das grandes empresas de comunicação que brotaram os raros discursos com teor político: como num jogral, personalidades da escrita, do rádio e da TV desfiaram no palco seus temores e seu repúdio a uma suposta ameaça à liberdade de imprensa, que estaria pairando sobre o universo midiático. Foi quase um manifesto de lealdade ao credo patronal: o Brasil estaria à beira de ver ressuscitar a censura do período militar, agora por conta da iminência de um regime “bolivariano” em Brasília.
“As frases de sentido dúbio insinuavam essa aleivosia, que vem sendo repetida por outros jornalistas menos categorizados do que aqueles – os pitbulls remunerados para radicalizar o discurso partidário da imprensa –, colocando respeitados profissionais no papel pouco edificante de incutir naquele ambiente festivo um viés que – por imposição ética do jornalismo – só deve ser exposto em circunstância que permita o contraditório.
“Além do mais, foi uma manifestação de pouca educação, visto estarem todos ali para uma celebração, não para uma dessas passeatas que levam à Avenida Paulista os desafetos da democracia.
“A demonstração de corporativismo em seu sentido mais raso teve frases de efeito que beiravam a sabujice. Mas nada disso estragou a festa. O evento de Jornalistas&Cia talvez seja o último lugar onde jornalistas brasileiros postados em campos ideológicos opostos podem trocar amabilidades, ainda que alguns não tenham entendido o espírito da coisa.”
Nada tenho a acrescentar ou objetar.
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Ricardo Kotscho é jornalista