Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Opções, perguntas e respostas

Todo mundo sabe exatamente como começa uma briga e poucos sabem como esta termina. É o caso do artificial debate sobre liberdade de imprensa no Brasil. As sombras, o simulacro, o medo neurótico de vir a perder regalias para uns, direitos para outros, levam a situação a um acirramento de ânimos que, embora cuidadosamente feito em proveta, parece destinado a envenenar as relações governo-imprensa. A última semana foi a semana dos fatos bêbados, dos fatos não-exatamente-fatos, do irracional ocupando o espaço do racional.


Teve início na quinta-feira (23/9) com a entrevista do presidente Lula ao portal Terra. Discorreu sobre muitos assuntos e, no meio desses falou o que até mesmo a secura do ar em Brasília não impede que se perceba: a imprensa deveria assumir que tem candidato nestas eleições. O presidente não revelou nenhum segredo de segurança nacional, não matraqueou qualquer PAC-3 para os assuntos ditos midiáticos, não aventou qualquer plano para empastelar jornais e revistas, calar emissoras de tevê e coisas maquiavélicas do gênero. Lula apenas sugeriu que a imprensa ‘deveria assumir categoricamente’ que tem candidato e partido, deixando de ‘vender uma neutralidade disfarçada’.


E por pouco os grandes jornais, um a um, tanto em ordem unida quanto em ordem alfabética não espancaram de vez os fatos do dia para ceder lugar à ‘manchete das manchetes’, aquela que vale 1 milhão de euros dando conta que o mundo está acabando e que sua destruição principiava por Brasília. E, então, num passe de mágica, aconteceu o até então impensável: um dos grandes jornais brasileiros decidiu seguir à risca o conselho presidencial. O jornal Estado de S.Paulo em sua edição de 25/9/2010 publicou o editorial ‘Mal a evitar‘ para dizer duas coisas: (1) que o jornal apóia José Serra para presidente da República e (2) que o jornal deplora que Lula e seu entorno escolham ‘os piores meios para atingir seu fim precípuo: manter-se no poder. Para isso vale tudo: alianças espúrias, corrupção dos agentes políticos, tráfico de influência, mistificação e, inclusive, o solapamento das instituições sobre as quais repousa a democracia – a começar pelo Congresso’. E como ninguém chega a juízos de valor tão contundentes como estes do dia para a noite, fica desde logo claro que tal primado é nutrido pelo jornal paulista há pelo menos oito anos.


Reflexos eleitorais


Restam responder ao chamamento do presidente os jornais Folha de S.Paulo e O Globo e as revistas semanais de informação Veja, IstoÉ e Época. E, isto feito, os leitores saberão de antemão qual o perfil político-partidário dos veículos que saciam suas mentes e seus corações com grande quantidade de opiniões, informações, fatos e o filtro ideológico que utilizam para cumprir sua função de comunicação.


E não há nada de mais nisso, ao contrário, é prática corrente na vistosa imprensa estadunidense declarar seu apoio àqueles que almejam exercer a presidência de seu país. Na Europa alguns países também agem assim. Mas, no Brasil, é sempre esse jogo de claro-escuro a semear desconfianças mútuas, aquelas que saem dos veículos de comunicação, aquelas que procedem dos governos democraticamente estabelecidos. E não precisava ser assim.


Chama a atenção à penúltima pesquisa sobre a eleição presidencial encomendado pela Folha e pela Rede Globo realizada pelo Instituto Datafolha – empresa do Grupo Folha – entre os dias 21 e 22 de setembro de 2010. Os resultados alcançados serviram como freio de arrumação (?) dos números: Dilma Rousseff (49%), Serra (28%), Marina Silva (13%). Quanto aos votos válidos ficou assim: Dilma Rousseff (54%), Serra (31%), Marina Silva (14%). A novidade foi que a distância entre a primeira colocada e os demais concorrentes à presidência encurtou em 5, 6 pontos porcentuais.


Mas, afinal, como o Datafolha chegou a esses números? Não preciso de bola de cristal para responder. Acredito que parte preponderante do resultado tem muito que ver com a intenção do Datafolha de medir os reflexos eleitorais do caso Erenice Guerra. E, para alcançar este intento, o Datafolha adicionou as seguintes perguntas ao levantamento:




– Você tomou conhecimento da saída da ex-ministra-chefe da Casa Civil Erenice Guerra do governo? Se sim, está bem informado, mais ou menos ou mal informado sobre esse caso?


– A ex-ministra-chefe da Casa Civil, Erenice Guerra, pediu demissão após as denúncias de que seu filho teria beneficiado empresas junto ao governo pedindo comissão. Você acredita que o filho de Erenice Guerra beneficiava as empresas junto ao governo pedindo comissão?


– E, na sua opinião, Erenice Guerra sabia ou não que seu filho beneficiava empresas junto ao governo pedindo comissão?


– E o presidente Lula sabia ou não que o filho Erenice Guerra beneficiava empresas junto ao governo pedindo comissão?


– E a candidata Dilma Rousseff, sabia ou não que o filho Erenice Guerra beneficiava empresas junto ao governo pedindo comissão?


Obrigação de mão dupla


Pausa para reflexão. Se é lícito e corriqueiro incluir perguntas que levam a certo direcionamento das respostas dos pesquisados, não seria oportuno que ainda antes do dia 3 de outubro o instituto considerasse incluir novas perguntas como as que elenco abaixo? São elas:




– Você tomou conhecimento da fala do presidente Lula dizendo que a grande imprensa deveria ‘deveria assumir categoricamente’ que tem candidato e partido, deixando de ‘vender uma neutralidade disfarçada’?


– Você acredita que o presidente da República tem o direito de cobrar que os jornais e revistas declarem sua posição política diante das eleições do próximo dia 3 de outubro?


– Você concorda com o presidente, de que os grandes meios de comunicação do país estão alinhados com uma das candidaturas à presidência da República? Se sim, com qual delas?


– Você deixaria de assinar ou de comprar exemplar de um jornal ou revista se soubesse de antemão que este jornal ou revista apóia claramente um ou outro candidato à presidência da República?


As coisas que pareciam simples, muito simples, foram rápida e irreversivelmente assumindo contornos do famoso teorema de Fermat, aquele problema que desafiou gerações de matemáticos por cerca de 350 anos e que influenciou, praticamente, toda a Matemática. É que em apenas uma semana por pouco São Paulo não mudou seu eixo para Caracas: intelectuais nas escadarias do Largo de São Francisco clamaram por liberdade de imprensa e buscaram colar no governo atual a pecha do autoritarismo e do fascismo; jornalistas e líderes de movimentos sociais clamaram, um dia depois, na sede do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, por maior responsabilidade por parte dos meios de comunicação e defenderam a necessidade de regulamentação do Artigo 221 da nossa Constituição Federal.


Enquanto isso, no Clube Militar do Rio de Janeiro – sede de tantos encontros em que se tramaram golpes contra nossa frágil democracia nos anos 1950, 1960… 1970 e 1980 – a seleta audiência armada, em sua maioria militares de pijama, parecia sequiosa por ouvir na quinta-feira (23/9) conferências contra os ataques à liberdade de expressão no Brasil. Conferencistas convidados pelos militares? Merval Pereira (O Globo) e do colunista Reinaldo Azevedo (Veja). Nesse diapasão não ficaria muito admirado se me dissessem que as profecias maias sobre 2012 retrocederam no tempo e agora deverão se tornar realidade no primeiro dia de 2011…


Transparência na esfera pública é bom se for bom para todos. Exigir transparência deveria ser visto como exigência de mão dupla: é saudável para os governantes e é igualmente saudável para os que destes cobram diuturnamente transparência. Nem o governo deve engabelar os governados nem a imprensa deve engabelar os leitores, ouvintes, telespectadores. Buscar a verdade onde quer que ela esteja é obrigação de uns e de outros.

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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter