Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os camelôs de políticos

Talvez esteja chegando a hora de repensar o culto aos marqueteiros. A mídia foi a primeira a alçá-los ao Olimpo. Isso aconteceu na medida direta em que o político tornou-se um produto. E que o marqueteiro passou a ter a prerrogativa de transformar esse produto.

O esvaziamento do conteúdo do discurso político e a substituição do real pelo simulacro da realidade tornaram-se valores positivos no jogo político. Sem que a sociedade se desse conta, a essência do debate lhe foi sendo escamoteada a tal ponto que a relação do eleitor com a classe política passou a ser construída da mesma forma como se constrói a sua relação com os personagens de uma ação ficcional.

Mas em televisão a dramaturgia é primária. As questões em torno das quais gravitam os personagens são necessariamente rasteiras. O espectador pode não se dar conta disso porque o universo dramático é inteiramente preenchido por essas situações e esses personagens. Na vida, contudo, esse universo não se esgota nos créditos de encerramento.

O picadeiro em que se transformou o cenário político brasileiro não caberia nos limites da teledramaturgia. É uma experiência muito mais dolorosa deparar-se com o que se passa a cada dia nesse cenário; conviver com a rotina dos escândalos e a desfaçatez de seus personagens. Mas esses personagens foram todos colocados na arena pelo voto do povo. Conclui-se que ou é isso o que o povo de fato deseja, ou o povo não sabe no que está apostando. Não existe terceira opção.

Show deprimente

Na suposição de que não é isso o que a sociedade quer, resta a constatação de que a sociedade não está escolhendo seus representantes, está escolhendo personagens. Estes personagens são criados por ficcionistas ousados, vorazes, porém medíocres. Que seguem as regras da construção do espetáculo televisivo, onde é necessário envolver 60 milhões de pessoas, de categorias sociais tão distintas, em emoções comuns a todas elas.

São emoções banais, primárias. E a verdade é que esse espetáculo é pobre, ruim. Programas políticos diluem o que há de pior na estética voltada para a massificação dos valores, a pasteurização das emoções e o emburrecimento sistemático do espectador. Tomados como modelo para a construção de governantes, tornam-se criminosos.

Desse espetáculo, o deputado Fernando Gabeira (PV) dá uma excelente dimensão em entrevista a Thais Oyama nas páginas amarelas da Veja (edição nº 1909, de 15/6/2005):

‘Poucos de nós, intelectuais que apoiamos Lula, se submeteram àquele mico no programa de televisão, de andar de um lado para outro com uma pasta debaixo do braço, dando a impressão de que todos os problemas do Brasil estavam equacionados e que, quando chegássemos ao governo, resolveríamos tudo’.

Na entrevista, Gabeira dá o tom desse espetáculo:

‘Era um programa de auditório, e nós tínhamos de levantar as mãos, todos juntos, e balançá-las para o alto. Eu fiquei perplexo com aquilo, não fiz. O Lula até reclamou: ‘Poxa, Gabeira, você ta dormindo?’. Claro que eu não estava dormindo, eu estava achando aquilo ridículo. Éramos participantes de um projeto político que, no último momento, havia sido sintetizado em um programa de auditório. Parecíamos chacretes’.

A cena da qual o deputado se recusou a participar é normal em programas políticos. Mais do que normal: trata-se de um velho clichê. Faz parte do cotidiano de um espetáculo tenebroso de mediocridade e falta de inteligência que se repete a cada campanha. Não há nada de glorioso nisso. O único fato notável é a insistência em elevar seus autores ao nível de grandes criadores. O que fazem é repetir a cada dois anos o mesmo show deprimente, que saiu do anedotário para entrar na rotina da construção dos líderes políticos deste país.

O conteúdo da embalagem

É por meio show que os artistas das campanhas políticas estão vendendo o produto que o eleitor brasileiro comprará para colocá-lo nas Câmaras municipais e estaduais, no Congresso Nacional ou no Executivo. E o mais intrigante é que esse tipo de indústria goza de uma singular excepcionalidade em relação a todas as outras: ao contrário da indústria farmacêutica, ou da indústria alimentícia, por exemplo, ela não é obrigada a declarar na embalagem o conteúdo do que está sendo vendido.

Dessa forma, é mais fácil para o consumidor comprar um ‘senador’ ou um ‘presidente da República’ do que um saco de biscoitos do qual desconheça os ingredientes. Mas se um político é reconhecido como produto, e celebrado como tal, sua ‘venda’ deveria estar regida pelo Código de Defesa do Consumidor – e não há razão para que importantes informações de consumo sejam omitidas.

Todos os dias, muitas indústrias são multadas por não deixarem claro para o consumidor as alterações nos pesos das embalagens. Este mesmo cidadão está sendo devidamente informado do contrapeso que está levando ao votar num candidato? Ele sabe das alianças, dos compromissos e das pessoas envolvidas?

É como se a venda se desse num ambiente e sua aplicação, em outro. Como se o marketing durante a campanha nada tivesse a ver com o que se dará por muitos anos depois das eleições.

Fala-se muito da responsabilidade da televisão na educação das crianças. Não se fala coisa alguma sobre a responsabilidade do marketing político na formação dos cidadãos. O cineasta Jean-Luc Godard constrói sua narrativa lembrando permanentemente que não passa de ficção o que o espectador tem diante de si. Transformada num folhetim revelado aos poucos, a política brasileira vai se desnudando para espanto do eleitor, que não reconhece quem escolheu para representá-lo.

Transformar uma pessoa em outra, com o propósito explícito de iludir esse eleitor, não é exatamente uma atitude digna da admiração que efetivamente a tem cercado. É isso o que faz um camelô, vendendo produtos falsificados. A embalagem dá a aparência de que dentro dela existe algo sólido, mas o conteúdo na verdade é vagabundo. A venda se torna mais fácil e o consumidor não tem idéia do que está comprando.

Falhas do sistema

Quando o político é transformado num produto, o eleitor é feito consumidor – e enganado da mesma forma. E não é só isso. Um vendedor de carros, ou de fogões, tem responsabilidade sobre a veracidade das informações que está passando ao comprador. Por que razão um vendedor de políticos está isento disso?

Se a eleição do presidente da República foi o resultado da escolha do povo por um governante que ele conhece, e em cujos méritos confia, não há nada a temer. Mas se foi simplesmente um golpe de marketing, então estamos fritos.

Lula tem um discurso político consistente. Dar-lhe forma é um trabalho de marketing político descrito em muitos estudos sérios. [Para os interessados, o Handbook of Political Marketing, de Bruce Newman, com mais de 800 páginas, é uma das referências mais completas; um trabalho em progresso bem recente e muito menor, de Stephan Henneberg, da Universidade de Bath, contrapõe técnicas de marketing absolutas ao conhecimento da política e pode ser encontrado aqui]. Mas reduzir esse discurso ao cenário descrito pelo deputado Gabeira na entrevista à Veja é um trabalho de desinformação, que em nada colabora para a construção da cidadania e gera crises políticas – quando não institucionais – como a que estamos vivendo agora.

Pois que diferença ética existe entre um marqueteiro que camufla a realidade e um editor de telejornais que faz a mesma coisa? Que razão tem a mídia para louvar um e execrar o outro? O eleitor que votou no ‘caçador de marajás’ não sabia que estava colocando Paulo César Farias no poder; o eleitor que votou num operário disposto a restaurar a ética na política não sabia que estava doando o seu salário para o caixa do Delúbio Soares. Neste ponto, IstoÉ Dinheiro foi de uma ironia exemplar (e conseguiu o que outras revistas julgaram impossível) em buscar os conselhos que Fernando Collor tem a dar a Lula.

Em meio à crise em que mergulha o país, a entrevista do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Nelson Jobim, à edição de domingo do Globo (12/6) é esclarecedora. O ministro aponta para as falhas do sistema eleitoral, que para ele precisa de um choque: ‘Nosso problema é a formação da vontade do eleitor’. A pergunta que se impõe é simples: até que ponto o eleitor sabe o que está comprando quando dá o seu voto a um candidato?

Se não soubermos responder a isso, talvez esteja chegando mesmo a hora de repensarmos o papel dos marqueteiros.