Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os campeões de fato e de direito

Dossiê elaborado por Santos, Botafogo, Palmeiras, Cruzeiro, Fluminense e Bahia, pedindo o reconhecimento dos títulos de campeões brasileiros entre 1959 e 1970, provocou debates exaltados no meio esportivo na última semana. É verdade que o clima esquentou mais entre as torcidas contrárias e a favor da unificação do que propriamente entre os jornalistas. O documento foi apresentado à imprensa por esses clubes no dia 25/3, em São Paulo.


Ficou claro, entretanto, que parte dos jornalistas de hoje não tem a mínima preocupação com o passado do nosso futebol. Esquecem que a imprensa esportiva é responsável, atualmente, pela geração de milhares de postos de trabalho graças às conquistas pelo Brasil de cinco títulos mundiais. Ou alguém considera que seríamos reconhecidos e conhecidos como ‘o país do futebol’ somente pelos títulos de 1994 e 2002?


A contradição dos jornalistas de hoje (pouquíssimos, na verdade) está no fato de que a mídia deu, à época, o devido destaque à Taça Brasil e ao Torneio Roberto Gomes Pedrosa. Jornais como O Estado de S. Paulo, A Gazeta Esportiva, Folha, Jornal da Tarde, Jornal do Brasil e revistas como O Cruzeiro dedicavam páginas inteiras a essas conquistas, com manchetes reverenciando o caráter nacional daquelas competições. Vários desses veículos deram a seguinte manchete quando o Bahia ganhou o título da Taça Brasil de 1959: ‘Bahia, o primeiro campeão brasileiro’.


Argumento frágil e subjetivo


‘Parte da imprensa está sendo contraditória ao negar o que nossos colegas escreveram no passado. Questiona-se algo que não se conhece, baseado em achismos, esquecendo que os jornalistas da antiga viveram aquele tempo. Foram testemunhas. Retrataram com fidelidade e precisão todos os acontecimentos. Não se pode apagar os arquivos dos meios de comunicação da época’, argumenta o autor do dossiê, jornalista Odir Cunha, que participou do programa Arena SporTV sexta-feira (27/3), apresentado pelo narrador da TV Globo Cléber Machado.


Odir lamenta o fato de o debate estar limitado a eventuais alterações na colocação dos clubes no ranking da CBF. ‘Uma minoria de jornalistas esportivos não tem tido a preocupação de qualificar a discussão, preferindo análises superficiais e apaixonadas. E esquecem que ídolos do passado estão ansiosos por receber a confirmação dos títulos que ganharam em campo, com muito brilho e magia’, avalia. ‘Esses craques guardam muita mágoa da CBF por essa injustiça.’


Com raríssimas exceções, alguns jornalistas da ‘antiga’, do tempo da velha máquina de escrever Remington, como Juca Kfouri, juntaram-se aos novatos. Para eles, os seis clubes estão se lamuriando por nada, ou quase nada. ‘Eles (os dirigentes desses clubes) deveriam estar cuidando de assuntos mais importantes’, desqualifica Kfouri, corintiano de quatro costados.


Isso não quer dizer que os contrários à unificação estejam errados e os favoráveis, certos. É fato que estes se apegam a situações concretas, portanto, pontuais, enquanto aqueles se atêm a um único, subjetivo e frágil argumento: o de que a Taça Brasil tinha fórmula de disputa diferente da do atual Campeonato Brasileiro. Como se a competição atual, de pontos corridos, tivesse surgido em 1971, e não em 2003.


Resgate de um período áureo


Se o veterano Juca se posicionou contra a equiparação dos títulos – opinião que coincide com a da maioria dos jornalistas da ESPN Brasil, como Mauro Cézar Pereira e Paulo Vinicius Coelho – o novato Alex Escobar, da TV Globo, soube reconhecer que os fatos retratados ontem pela mídia, em relação aos títulos entre 1959 e 1970, não podem ser apagados. Escobar, que também esteve no Arena, considerou justa a reivindicação dos seis clubes. ‘Não dá para esquecer o que esses craques maravilhosos conquistaram com brilhantismo dentro de campo’, resumiu.


No mesmo programa, Marco Antônio Rodrigues (pra mim, o melhor jornalista esportivo do país, por falar sobre futebol com simplicidade, sem meias-palavras, sem ranço e rancor, sem faca entre os dentes) afirmou que a CBF tem a grande chance de corrigir o erro histórico, equiparando os títulos da era Pelé e Garrincha aos disputados a partir de 1971. ‘Nós estamos desprezando conquistas de jogadores que ganharam três Copas do Mundo nesse período em quatro disputadas’, observou Rodrigues. ‘O pedido é justíssimo.’


Sidney Garambone, um dos diretores do Esporte Espetacular, da TV Globo, também entende que a CBF não pode deixar passar a oportunidade de reconhecer esses triunfos. ‘Não se pode analisar esse caso com a paixão de torcedor. É preciso entender que se trata de um resgate desse período áureo do nosso futebol’, argumentou Garambone, sugerindo que a CBF aproveite o dossiê para celebrar, em 2009, os 50 anos do primeiro campeonato brasileiro. ‘Quem esquece o passado não constrói seu futuro.’


São os primórdios, estúpidos!


Mais ridículo do que virar as costas para essas conquistas, ou mesmo limitar assunto caro à memória do futebol brasileiro a números frios dos rankings, como se nada tivesse acontecido de importante naquele tempo, é defender a equiparação daqueles títulos com a atual Copa do Brasil. Argumenta-se que a fórmula daquela competição era idêntica à da atual.


Ocorre que os tempos eram outros. Só havia um campeonato nacional entre 1959 e 1970. Esse é um ponto, explicado mais adiante pelo jornalista Odir Cunha. O outro: muitos jornalistas esquecem o sentido da palavra ‘primórdios’. Não está havendo respeito à origem de tudo, quando o campeonato brasileiro começou a ser disputado. São os primórdios, estúpidos!


Havia, naquela época, um regulamento com regras claras, aprovado pela entidade responsável por sua realização e pelos clubes participantes. Não importa se o campeão de determinado ano jogou apenas quatro, oito ou 20 partidas. Ou mesmo se a disputa era no sistema mata-mata. Deve-se respeitar o regulamento da ocasião. Assim nasceu o Campeonato Brasileiro. São os primórdios, estúpidos!


Naquela época, tudo era novo. As coisas nascem e vão sendo aprimoradas ao longo do tempo. Tanto que a competição nacional vem sendo aperfeiçoada desde 1959. A última ‘emenda’ ocorreu em 2003, sob aplausos dos mesmos jornalistas que hoje tentam desqualificar o debate, com tiradas sem graça, típicas de torcedores. Saímos de um campeonato com fórmula híbrida em 2002 (pontos corridos para definir os oito classificados e depois mata-mata) para um de pontos corridos. No entanto, os títulos anteriores a 2003 estão mantidos. São os primórdios, estúpidos!


O Corinthians, o maior vencedor de campeonatos paulistas, dividiu quatro dos seus 25 títulos com a Associação Atlética São Bento, o Paulistano, o Internacional e o Paulistano novamente nos anos de 1914, 1916, 1928 e 1929, respectivamente. Duas entidades eram responsáveis pela organização do futebol em São Paulo. O campeonato, no início, chegou a ser disputado por apenas cinco equipes. Apesar dos ‘senões’, os títulos são reconhecidos. Estão na relação de conquistas corintianas. E com justiça. São os primórdios, estúpidos!


Sem comparações


Odir diz que não faz sentido comparar Taça Brasil e Copa do Brasil. Num texto, publicado no blog do jornalista José Roberto Torero, ele explica:




Um dos exemplos da desinformação sobre a Taça Brasil é a comparação que se faz entre ela e a atual Copa do Brasil. O nome é parecido e a forma de disputa também. Só isso. As semelhanças param por aí. Não há qualquer equivalência entre a importância de uma e outra.


Enquanto a Taça Brasil reunia campeões estaduais e foi, por oito anos consecutivos, a única competição nacional a dar vaga para a Taça Libertadores da América, a Copa do Brasil é um torneio de excluídos, não é prioridade para as grandes forças do futebol nacional, dá como prêmio apenas uma das cinco vagas do Brasil na Libertadores e não empresta ao seu campeão o título de campeão brasileiro da temporada.


Ninguém chama, ou chamará, o vencedor da Copa do Brasil de campeão brasileiro do ano. Este título está reservado ao vencedor da competição nacional, hoje denominada `Campeonato Brasileiro´. O campeão da Copa do Brasil é apenas o campeão da Copa do Brasil, ao contrário do vencedor da Taça do Brasil, que era considerado, divulgado e premiado como o campeão brasileiro da temporada.


Há um farto capítulo no dossiê que confirma o tratamento de campeão brasileiro que a imprensa nacional destinava ao ganhador da Taça Brasil. Uma competição única no País, aberta aos grandes clubes brasileiros e na qual eram disputadas as únicas vagas reservadas ao Brasil na Taça Libertadores da América, logicamente dava ao seu vencedor o mérito e o status de campeão nacional – o que, repita-se, amplamente comprovado pela cobertura da imprensa na época.


É importante destacar que enquanto durou, a Taça Brasil definiu as únicas vagas brasileiras para o Campeonato Sul-americano de Clubes, ou Libertadores. De 1959 a 1966 apenas o vencedor da Taça Brasil representou o país na Libertadores, e de 1967 a 1969 o direito foi estendido também ao vice-campeão da Taça Brasil.


Ou seja: de 1959 a 1969 nenhum time brasileiro que tenha participado da Libertadores chegou à competição sem ser campeão ou vice da Taça Brasil. A relevância da Copa do Brasil é bem menor. Como já dito antes, ela dá 20% das vagas brasileiras para a Libertadores e seu título é muito menos importante do que o do Campeonato Brasileiro.


A Copa Brasil, desde a edição 2001, não permite a participação dos times brasileiros classificados para a Taça Libertadores. Ou seja, os quatro times de mais destaque do País no ano anterior ficam fora da Copa. A tabela de 2009, a propósito, não consta de São Paulo, Grêmio, Cruzeiro e Palmeiras.


Além desses sentidos desfalques – já que teoricamente se tratam dos melhores times do país –, a competição, disputada no primeiro semestre do ano, ainda sofre a concorrência dos estaduais, cujo título é mais valorizado por alguns clubes, que chegam a escalar reservas nos seus compromissos da Copa.


O desinteresse das grandes forças do futebol nacional provocou, em algumas edições da Copa do Brasil, surpresas significativas, como os títulos de Criciúma em 1991, Juventude em 1999, Santo André em 2004 e Paulista de Jundiaí em 2005, sem contar os vice-campeonatos de Ceará em 2004, Brasiliense em 2002 e Figueirense em 2007.


Por outro lado, como essa pesquisa deixa bastante claro, a Taça Brasil as equipes mais poderosas do futebol nacional e só foi vencida por clubes que, de tanto prestígio, depois viriam a fundar o Clube dos Treze. Como prova de sua categoria superior, todos os campeões da Taça Brasil conquistaram também o título do Campeonato Nacional (…).’

******

Jornalista, Brasília, DF