Em tempos de iniciativas socialmente saudáveis, o maior grupo de comunicação do Sul do país – a Rede Brasil Sul (RBS) – lançou no fim de janeiro um documento que tenta aprimorar o já ultrapassado Manual de Ética, Redação e Estilo da Zero Hora, editado nos anos 90. Sintético nas suas 42 páginas, não-comercializável e disponível aos leitores na internet, o Guia de Ética e Responsabilidade Social da RBS apresenta alguns dos compromissos da corporação que responde por generosas fatias do mercado de comunicação no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. E embora não traga nenhuma menção neste sentido, o guia funciona como uma carta de boas intenções endereçada à sociedade, que deixa claro como deve ser o procedimento dos veículos e jornalistas nas mais diversas situações cotidianas em que ética não é apenas uma bela palavra.
Logo na apresentação do livrete, Jayme e Nelson Sirotsky, pela ordem presidente do Conselho de Administração e diretor-presidente do grupo, afirmam que as normas expressas ali não são ‘regras imutáveis e impositivas, com a pretensão de contemplar e resolver todos os dilemas éticos da atividade’, mas devem ser observadas no dia-a-dia ‘sempre com o propósito de aplicar a responsabilidade social da empresa e os direitos do público’.
O guia apresenta a missão e os valores da RBS: ética e integridade, liberdade e igualdade, desenvolvimento pessoal e profissional, responsabilidade empresarial, satisfação do cliente e compromisso social e comunitário, responsabilidade e compromisso social. O grupo estrutura o cumprimento das suas condutas éticas em quatro esferas: a ética para todas as suas atividades, ética editorial, nas relações internas e nas externas. Mas quanto a seguir as normas, o documento é taxativo: todos os colaboradores assumem a responsabilidade de cumprir e defendê-las.
Neste sentido, o livreto da RBS é claro no que tange a alguns procedimentos da prática jornalística, recomendando a postura a ser adotada. Não pairam dúvidas, por exemplo, quando há conflito de interesses entre veículos e fontes ou mesmo quando o repórter recebe mimos que acarretem vantagens pessoais. Embora muito se diga pelas redações, apontar a maneira como agir em momentos como esses ajuda jornalistas novatos e veteranos, sem distinção. Assim, a empresa demonstra publicamente que se preocupa com a situação, orienta seus funcionários e tenta evitar futuros transtornos. Porém, entre a recomendação e o pleno cumprimento de uma norma ética, há uma boa distância que nenhum código ou guia satisfazem completamente.
Mais confusão
Nos verbetes relacionados ao que chama de ‘Ética Editorial’, o guia enumera situações delicadas em que os funcionários da RBS podem se ver cotidianamente.
‘Como lidar com acusações ou ameaças? Deve-se citar o concorrente quando ele traz a informação primeiro? De que forma serão feitas as correções quando houver erro? Quem paga as despesas nas reportagens? Como manter a imparcialidade, a privacidade e a precisão no jornalismo?’
Alguns destes questionamentos são respondidos com presteza, mas outros orientam ações no mínimo questionáveis. Por exemplo, a RBS recomenda que seus colaboradores não participem de eventos relacionados a disputas em entidades de classe ou outras organizações. Seja em serviço ou de folga (pág.17). O motivo não é externado, mas pressupõe-se que a empresa esteja preocupada com a independência e a credibilidade. Mas pergunta-se: não é exagero gerenciar as vontades dos empregados fora do tempo de serviço? Os funcionários são propriedades da RBS ou estão a serviço dela?
Na página 19, a norma diz que ‘os jornalistas da RBS não devem manifestar publicamente sua preferência partidária ou inclinação ideológica, a menos que essa informação seja parte das características pelas quais o profissional é amplamente reconhecido pelo público’. Mas pergunta-se: não seria mais honesto dizer ao público de que lado se está? Não é mais transparente?
Duas páginas adiante (pág. 21), no verbete ‘Documentos e Identificação’, o guia mais confunde do que esclarece:
‘A RBS não forja documentos para a realização de reportagem ou notícia. Eventualmente, os profissionais serão autorizados a recorrer a situações ou nomes fictícios, desde que o artifício se destine à comprovação de ato ilícito’.
A que situações se pode recorrer? O documento não diz. E se tais recursos forem ilícitos? Usar nomes fictícios não é usar de falsidade ideológica? Pergunta-se: é legítimo usar expedientes ilícitos para comprovar uma ilegalidade?
Normas e drogas
Nebuloso em alguns trechos, o Guia da RBS ilumina discussões importantes em outros. Quando o tema é precisão, por exemplo, a norma vaticina que ‘a simples publicação de versões conflitantes não é sinônimo de imparcialidade’, cabendo ao veículo ‘apurar a verdade, com isenção e na sua plenitude’ (pág. 26). A afirmação abre um campo amplo de reflexões acerca dos limites da atuação dos veículos de comunicação e mesmo as fronteiras do próprio ato narrativo jornalístico. Quanto à privacidade, o grupo entende que ‘informações sobre a vida privada de pessoas públicas passam a ser assunto jornalístico quando ajudam a compor a personalidade de pessoas que os leitores têm o direito de conhecer em sua inteireza’ (pág. 28). A posição é mais definida do que em muitas empresas maiores no ramo, mesmo fora do país…
O guia prossegue ditando regras de conduta para as relações externas ao grupo e internas. Quanto a essas últimas, percebe-se mais um escorregão da empresa no item ‘Privacidade’, à página 33:
‘A empresa respeita a opção política e religiosa dos colaboradores, desde que isso não interfira no ambiente de trabalho e não comprometa o desempenho das atividades’.
Como é? Respeita a diversidade desde que ela não atrapalhe o bom andamento das coisas? Ao impor condições para aceitar um direito que é inalienável e previsto na Constituição Federal (bem como em outras importantes convenções internacionais), a RBS coloca-se numa posição amoral, além do bem e do mal. Nessas condições, a privacidade que o grupo diz reconhecer é um direito sob tutela, um direito condicionado à aprovação da corporação. Um terreno perigoso, esse…
Semelhante contradição acontece nas ‘Normas Gerais’, na página 14, onde se pode ler a proibição ao uso de ‘drogas ilícitas nas dependências da RBS’. A orientação vem logo seguida do veto a qualquer forma de discriminação. Pode-se perguntar: e se um repórter é dependente químico e acaba caindo em tentação? Se for demitido por isso, a empresa não estará discriminando o adicto, transformando a vítima em culpado?
Razão e sensibilidade
Contra-sensos como este são até certo ponto naturais e esperados em códigos deontológicos, ainda mais quando são editados por empresas. As corporações têm interesses que muitas vezes se chocam com os do jornalismo como prática social. Quando isso acontece, é difícil sair ileso dos estilhaços conceituais.
Como já disse antes, um guia como o da RBS é uma carta de intenções, uma proposta pública de como agir. A iniciativa é digna de elogios na medida em que profissionaliza o mercado, elevando o nível das discussões sobre a ética jornalística e convidando a concorrência a se preocupar com tais temáticas. Mas editar listas de princípios não garante bom jornalismo ou bom caráter. Não assegura a existência de empresas éticas e corretas. Na verdade, elas são resultado de esforços coletivos, de uma reunião de seres humanos com convicções distintas, interesses variados e consciências próprias. As pessoas orientam suas condutas por valores morais pessoais e coletivos; suas atitudes são frutos de escolhas, de opções, que só surgem a partir da reflexão. Disso não se pode escapar. Homens e mulheres pensam e se emocionam, raciocinam e julgam.
Mesmo com tanto avanço tecnológico e com razoável complexificação das sociedades, algumas coisas continuam como sempre foram: razão e sensibilidade não podem constar de guias, não são mercadorias nas prateleiras da vida.
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(*) Jornalista e professor de Legislação e Ética em Jornalismo na Universidade do Vale do Itajaí (Univali)