Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Os constrangimentos organizacionais no jornalismo

Confesso que tentei ler tudo o que pude (não sei se o suficiente) sobre os casos dos jornalistas Alberto Dines e Jorge Kajuru, que foram autoritariamente silenciados nos veículos em que atuavam por terem desagradado diretamente seus superiores e, ao que se diz e imagina, a quem estes últimos tentam não incomodar – mais ainda, agradar a troco do minguado e sempre atrasado dinheiro público, fora outros tantos favores que se solicitam sempre.

Não tenho elementos contundentes para falar sobre uma real ação do governador mineiro Aécio Neves no caso da saída de Kajuru da Band. Mas, mesmo que se trate apenas de um boato, esta não é mesmo a primeira vez que se fala, em Minas, em reação do Palácio da Liberdade (uau!!!!), sede do governo estadual, contra jornalistas que teriam desagradado Aécio. Nem creio que nominar os responsáveis diretos pela exclusão discricionária de Kajuru, da Band, e Dines, do JB, seja a questão mais importante.

Alguns colegas jornalistas com quem pude conversar falaram-me não apenas em revolta em relação às represálias, mas em perplexidade. O jesuíta Padre Libânio, teólogo de vanguarda que Minas Gerais tem a sorte e a honra de acolher, lembrava recentemente, em encontro sobre Ética na Comunicação em BH, que etimologicamente a palavra perplexidade tem o sentido de ‘dobrar-se ao máximo’, ou seja, ficar perplexo pode significar que chegamos ao limite de nossas possibilidades de compreensão, de assimilação.

Certamente que a censura a Dines e Kajuru tem diretamente a ver com liberdade de expressão, com a desvalorização do profissional jornalista, com desrespeito ao leitor e inibição do papel social da imprensa. Mas tem, primeiro e obviamente, a ver com poder. Tanto quanto a censura exercida, talvez o que mais nos incomode em toda(s) essa(s) histórias(s) seja a explicitação da verdade – jogada em nossa cara – que mais teme o jornalista: que sua liberdade de expressão é consentida e controlada. Que podemos ser ferozes, biliosos e irônicos, se isso bem agrada ao padrão. Que, afinal, é o dono do meio.

Michel Foucault alerta para um cuidado importante para se pensar o poder: o poder deve ser analisado como algo que funciona em cadeia, não está localizado aqui ou ali, nem está nas mãos de alguns. O poder não é um bem, mas é algo que se exerce em rede, e nessa rede todos os indivíduos circulam, sendo que qualquer um pode estar em posição de ser submetido ao poder, mas também de exercê-lo. Nessa perspectiva, não se trata da questão de ‘quem tem o poder’, mas de estudá-lo no ponto em que se implanta e produz seus efeitos reais. Aqui, vale recuperar também a noção de efeitos de verdade que o poder produz, como o poder se legitima nas relações criando discursos que funcionam como norma.

Panopticon vigiado

Sei que algumas destas noções são de atualidade questionável, pelo fato de serem entendidas como pertinentes ao que se costuma chamar modernidade. Pois é a partir deste lugar que falo, mesmo entendendo que há outras circunstâncias e ambientes alterados em relação a ela no mundo contemporâneo.

Entre as teorias do século 20 sobre o jornalismo, a teoria organizacional (Traquina, 2000), formulada por Warren Breed, trata dos constrangimentos organizacionais sobre a atividade profissional do jornalista. Ela mostra que a todo momento o jornalista é levado a ser ‘socializado’ na política editorial da organização, por uma sucessão sutil de recompensas e punições. E que muitas vezes (infelizmente, a maioria) ele se conforma mais com as normas editoriais da política editorial da organização do que com quaisquer crenças pessoais que tivesse trazido consigo para o veículo em que trabalha.

Longe de querer cansar o leitor, gostaria ainda de pontuar essa reflexão retomando outro aspecto importante da obra de Foucault e que pode contribuir para uma melhor discussão: o panoptismo. O Panopticon era um edifício em forma de anel, com um pátio no meio no qual havia uma torre central com um vigilante. Esse anel se dividia em pequenas celas que davam tanto para o interior quanto para o exterior, o que permitia que o olhar do vigilante as atravessasse. Essa forma arquitetônica das instituições valia para escolas, hospitais, prisões, fábricas, hospícios (Foucault, 1977: p.87).

Neutralização do jornalista

O Panopticon era uma espaço fechado, recortado e vigiado em todos os seu pontos. Nele os indivíduos estavam inseridos num lugar fixo, com os menores movimentos e acontecimentos controlados. O poder era exercido segundo uma figura hierárquica contínua, o que permitia que cada um fosse constantemente localizado, examinado e distribuído (Foucault, 1977: p.174). Assim, a vigilância hierárquica sobre os indivíduos permitia a articulação de um poder com um saber, que determina se alguém está se conduzindo ou não como deve. Essa articulação se ordena em torno da norma, do que é ou não normal, do que é correto ou incorreto, do que se deve ou não se deve fazer (Foucault, 1999b: p.88).

Breed identifica alguns fatores que levariam a um conformismo com a política editorial da organização (e que enfatizaria uma cultura organizacional, em vez de uma cultura profissional):

a) autoridade institucional e as sanções – muitas das sanções exercidas nas rotinas produtivas, ou seja, desde a distribuição das pautas ou exclusão de matérias;

b) sentimentos de obrigação e estima para com os superiores ;

c) ausência de grupos de lealdade em conflito – a resistência em muitas redações da presença e atuação da representação sindical;

d) o prazer da atividade – jornalistas gostam de seu trabalho, as tarefas são interessantes, resultam em satisfações de caráter não-financeiro;

e) as notícias como valor – a harmonia entre jornalistas e a direção é cimentada pelo interesse comum pela notícia.

Sem entrar em mérito ou julgamento de valor e aplicabilidade da teoria, os apontamentos de Breed colocam-se como pontos instigantes para pensar sobre o exercício da profissão. Listá-los nesta discussão tem o exclusivo objetivo de sugerir, se me permitem, que a reação de que foram vítimas Dines e Kajuru só pode se explicar numa imprensa que historicamente – principalmente a partir da década de 50 – vem sendo marcada pela neutralização do profissional jornalista enquanto sujeito, ator e autor intelectual. Produtor de conteúdo e de conhecimento.

Presos e vigiados

Uma anulação que começa (ou termina) pelo texto – do qual ele é, por determinação de obtusos manuais, obrigado a apagar suas marcas enquanto enunciador e sujeito observador – e se dissemina por todo o processo de produção jornalística.

Dines e Kajuru foram silenciados porque disseram o que pensavam. Mas se já haviam feito isso antes (e como fazem com competência e dignidade sempre), o que teria mudado agora? Houve mais que discordância. Algum elo de tolerância e consentimento nesta complexa cadeia de poder rompeu-se. E creio que com a consciência clara e assumida do risco por parte dos jornalistas em questão. Como cabe aos profissionais corretos.

Comecei este texto citando Foucault e, por coerência, mas, exatamente aqui, sem a devida certeza, termino citando o mesmo autor. É creditada a Foucault a expressão ‘é preciso juntar o nome à coisa’. É como nos sentimos, os jornalistas, creio, muitas vezes. Vivemos presos e vigiados, mas assustamo-nos quando descobrimos que não temos liberdade de expressão.

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Professor da PUC-Minas e diretor da PUCTV