Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os desfazedores da opinião pública

Vamos falar baixinho, para que não nos escutem. Os colunistas, os repórteres, os mais bem pagos jornalistas brasileiros moram bem longe do povo do Brasil. Ouviram com os olhos e ouvidos abertos, raros leitores? O povo no Brasil reconhece na grande imprensa um estranho, quando não um inimigo, que lhe sopra afirmações sem nexo, sem valor, sem crédito. E aqui, talvez mais que em outra parte, e aqui, neste caso de divórcio, bem se exibe a sociedade de classes que nos oprime. Aqui estamos diante de mundos diferentes em um mesmo território. Aqui… aos fatos, aos fatos, já, para que não nos acusem de texto opinativo sem fundamento algum na realidade.

Acompanhem por favor as últimas notícias da semana que, ninguém notou, já foi embora.

** No Jornal da Record de quarta-feira (8/2): ‘Lei Seca no Planalto: ministro revela que o presidente Lula está sem beber há 40 dias’.

** No dia seguinte, no jornal O Estado de S.Paulo: ‘Bar no Aerolula? ‘Ele não bebe há 40 dias’…’ .

** No jornal O Globo, no mesmo dia: ‘Lula está abstêmio há 40 dias, revela Furlan’ – e mais revelaram as repórteres, que teriam ido cobrir a viagem do presidente ao continente africano: ‘Animado com a dieta à base de proteínas que já lhe fez perder 12 quilos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva abriu mão de um de seus prazeres confessos, a cachacinha’.

Lindo, não? Antes que adentrem a intimidade presidencial, e revelem outros prazeres inconfessos, prazeres até maiores, mesmo para um viciado em álcool, vejam que da viagem presidencial, dos acordos que firmou, do estreitamento da política externa com países antes sequer visitados, vejam que o fato jornalístico mais importante foi o fato de um alcoólatra, por acaso e injustiça na presidência da República, estar angustiosa e ansiosamente sem álcool há terríveis e tenebrosos 40 dias.

Isto que acabamos de escrever não é uma inferência, não é um livre interpretar, como o fez Clóvis Rossi, na Folha de S.Paulo (8/2):

A ópera-bufa Brasil

Uma vez iniciada a ação judicial que o PT quer propor contra Fernando Henrique Cardoso por ter dito que ‘a ética do PT é roubar’, as coisas desenvolver-se-iam assim, conforme a Folha apurará: FHC convoca Luiz Inácio Lula da Silva como testemunha de defesa. O juiz estranha. FHC explica: ‘Bom, não foi o Lula quem disse, no horário nobre da TV, que o PT estava desmoralizado? Ninguém fica desmoralizado por ter comportamento ético irreprochável, certo? Então, Lula está dizendo o mesmo que eu disse, com mais conhecimento de causa porque é um dos fundadores do PT e seu presidente de honra’.

O juiz cede à lógica fernandohenriquista e chama Lula, que acusa o governo FHC de ter sido também corrupto. FHC se defende: ‘Minha corrupção foi pontual, não foi sistêmica como a sua’.

O juiz estranha. Corrupção é corrupção, acha, mas toca o bonde, que afinal ele é juiz, não candidato.

Lula, furioso, grita: ‘Mas eu não sabia, eu não sabia, eu juro que eu não sabia. A culpa é do PT.’

A citação acima é um pouquinho mais que o livre-inferir. Com mais propriedade, dir-se-ia um livre-ferir. Observem que nesse passo, em nome da independência, que depende da política da empresa, um colunista de um dos maiores jornais brasileiros manda aos infernos um dos deveres sagrados da grande imprensa – o de ser objetivo, o de se ater ao acontecido. E tamanha é a gana que não se vexa em danar a recomendação de citar os fatos sem falsificar o contexto.

Compreensível, dirão, aqui o colunista exerce a sua veia de ficcionista, com a devida licença de Machado de Assis. Compreensível, mas nos importa mais destacar que em nome da luta política, que neste ano assume o papel de uma luta eleitoral, a imprensa brasileira vai do acessório, que obedece a um preconceito, ao livre-ferir, que obedece a velhos conceitos. E nisto, reconheçamos, há um improviso que raia a criação, porque repórteres e colunistas já têm a notícia pronta, antes até da realidade. É coisa de gênio o que conseguem escrever com as idéias que têm antes do conhecimento de qualquer fato. Vejam se há engano.

Além de bêbado, supersticioso, bruxo

Depois de resistir à tentação de beber até cair, no avião e do avião, o presidente conseguiu chegar ao segundo destino na África. Para quê? Para receber os títulos de algumas, com o devido perdão da palavra, reportagens do sábado (11/2).

** No Jornal do Brasil:

Lula fecha o corpo contra a ‘urucubaca’ no governo

Presidente participa de ritual vodu em Benin, na África, e se diz ‘mais leve’

Com o Portal do Não Retorno ao fundo, no vilarejo praiano de Ouidá, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ganhou ontem uma ajuda contra a ‘urucubaca’ que diz atrapalhar o seu governo. Esteve num ritual de vodu, fechou o corpo e afirmou que ficou ‘mais leve’.’

** O Globo, mesmo dia:

Lula participa de ritual vudu no Benin

Os tambores da África bateram forte ontem pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Se estava preocupado com a urucubaca lançada pelos adversários no Brasil, como disse recentemente, ele pode ter saído do Benin, berço do vudu, com o corpo fechado para enfrentar a ferrenha disputa eleitoral. O presidente passou a tarde toda sendo reverenciado com orações e danças feitas por feiticeiros vudus, líderes tribais e pelos descendentes de escravos brasileiros que formam uma espécie de colônia em Ouidá, nos arredores de Cotonou, capital do paupérrimo Benin.’

Com a devida ressalva do vodu que se enfeitiçou num ‘vudu’, deveríamos acrescentar esse título do colunista Josias de Souza , em seu blog (11/2), ‘Lula ‘corpo fechado’ da Silva’, para maior glória da informação e notícia. E, se a inteligência do leitor permite, esta pérola:

‘Há coisa de um mês e meio, Lula queixara-se de que seu governo vinha sendo alvo de ‘urucubaca’. Pois Sua Excelência tratou de aproveitar a visita à África para ‘fechar o corpo’. De passagem pelo vilarejo de Ouidá, no litoral do Benin, o presidente tomou parte de um ritual vodu‘.

Permitam, não se trata aqui de um passeio masoquista por uma imprensa provinciana – esta, sim, digna do maior banho de alfinetes, fetiches, magias e vodus. Estamos falando, estamos nos referindo aos maiores jornais de um país que honra o mundo por sua diversidade e cultura. Estamos nos referindo a profissionais de imprensa com mais de 40 anos de exercício, e que ainda assim se referem aos leitores como…

‘…Os descerebrados da teoria da conspiração deveriam incluir nela o ministro Luiz Fernando Furlan. Cada vez que vai ao exterior, produz uma frase que nem a oposição imaginaria utilizar. Primeiro, foi o reconhecimento de que o país estava ‘desanimado’ (dezembro). Depois, que o Brasil perdera o momento internacional, atropelado por China e Índia (janeiro).

Agora, devolve ao noticiário a questão etílica, ao dizer que Lula não bebe há 40 dias. Bom, e antes?, é a pergunta inevitável seguinte. Que, por sua vez, remete ao episódio Larry Rother, como bem lembrou Nelson de Sá em sua coluna de ontem. Parece inesgotável a capacidade do governo de fabricar trapalhadas’. (Clóvis Rossi, Folha de S.Paulo, 10/2)

Colunistas assim não levantam o cérebro da cadeira e desenvolvem suas colunas a partir do que os repórteres montaram em reportagens, que estão prontas antes que se escrevam. Em que situação, qual foi mesmo a resposta, em que contexto foi dito que o presidente não bebe há 40 dias? Não importa. O que se disser, quer apenas dizer: o presidente é um desqualificado, e isto quer dizer, é um analfabeto, um alcoólatra, e agora, por cima, burro, estúpido, que viaja ao continente africano com o objetivo de mergulhar numa sessão de bruxaria. Um típico homem do povo, corrupto e corrompido.

Quem não vê isso é um descerebrado, isso, um doido que acredita em teoria de conspiração das classes dominantes, um paranóico que julga a grande imprensa uma defensora dos interesses do velho capital. Descerebrados e paranóicos que jamais compreenderão o jogo da barganha: ‘Se perdoas minhas dívidas, se me concedes crédito que jamais pagarei, então terás a imprensa que sonhas’.

‘Desconstrução’ da imagem

Em mais de um sentido, alguns repórteres e colunistas se tornam desfazedores da opinião. Em um sentido familiar, nordestino, desfazem de, zombam, diminuem, depreciam a opinião pública. A verdade, acreditam, é aquilo que o jornal noticiar. A verdade é a sua versão, repetida até o limite que sature, até um limite que, aí sim, gere descerebrados. ‘O sucesso de um jantar é o que sair no jornal.’ Ou seja, o leitor é um perfeito idiota, uma tábula rasa, que receberá passivo a imagem e as palavras que lhe forem impressas. A opinião pública é a opinião da imprensa, acreditam.

Em outro sentido de desfazer, ela, a grande imprensa, crê que possui a força da destruição, de reduzir a pó o que estava feito, construído, ou em processo de construção. Existe até uma nova palavra para isso, ‘desconstruir’. Esta é a opinião dos mais sábios, dos colunistas, dos editores aos publicitários, a crença no poder destruidor, desfazedor da mídia. Um aventureiro, qualquer um, pode se tornar um caçador de marajás, e governar depois com todos os marajás e jóias que caçar, para estar a seu lado.

Em um e outro sentido, do mais radical ao mais ponderado, colunistas, editores, repórteres, a partir do poder de fogo dos seus veículos acreditam que constroem, que fazem opinião, que fazem cabeças. É até possível que em muitas situações assim aconteça. Se estiverem como peixes no oceano, se os valores que pregam e difundem, sim, os jornalistas fazem opinião. Melhor dizendo, reforçam, estimulam e fazem crescer como fermento a massa de crenças da população. Mas jamais conseguirão impor a índios nas selvas, imersos nas selvas, por exemplo, o valor da beleza das modelos das passarelas. Dirão, os homens e mulheres indígenas, ‘aqui em nossa tribo essa mulher não conseguiria marido’. Magras, esquálidas, pálidas, altas e com aquele andar, nos caminhos da selva, não.

Isto é o que nos passa, por vezes, a ‘desconstrução’ da imagem de Lula no meio do povo brasileiro. Uma profunda inadequação de valores, de querer passar desqualificação para um homem que ainda retira o seu peso do que representa para os ‘desqualificados’. Para os que gostam de beber, para os que freqüentam terreiros de pais e mães-de-santo, para os trabalhadores que sonham um dia vestir também um terno com a sua ‘galega’, com a sua nega ao lado. Em Canudos, nunca é demais lembrar, frades capuchinhos, contra o Conselheiro, chegaram pregando jejum, a forte e pesada abstinência de tudo, menos de comer bacalhau e farinha. Os sertanejos caíram na gargalhada, e gritaram para os santos frades:

– Isto para nós é fartura!

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Jornalista e escritor