Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os ‘dez mais’ da desgraça e das guerras

Todos os anos, duas organizações, a das Nações Unidas (ONU) e a dos Médicos Sem Fronteiras (MSF), publicam relatórios que listam os ‘dez mais’ da desgraça mundial e que são desprezados ou sub-divulgados pela mídia. O propósito é chamar a atenção dos jornalistas, fornecendo-lhes dados, fotos e vídeos sobre os conflitos que o mundo esqueceu. Uma tentativa de mostrar que, muito além do Oriente Médio e do Afeganistão, há conflitos que já duram anos e não dão sinais de decrescimento.

Já há algum tempo, o jornalista mineiro Argemiro Ferreira fez um interessante levantamento sobre o comportamento da imprensa na cobertura dos conflitos mundiais. O momento histórico era outro e a natureza desses confrontos, diversa. O mundo era, então bipolar, dividido entre capitalistas e comunistas e suas respectivas zonas de influência. A pauta, a Guerra do Vietnã. Como correspondente internacional, Ferreira colecionou, minuciosamente, notícias das quais extraía o tratamento que era dado à morte dos envolvidos. O jornalista suspeitava que a mídia trabalhava com uma espécie de critério hierárquico – social e econômico – na contabilidade das ‘baixas’ de guerra, seja de soldados ou de civis. O resultado confirmou seus temores. Para que a morte do ‘lado de lá’ merecesse o mesmo espaço na mídia, o mesmo destaque, era necessário que morressem cerca de trinta vietnamitas contra somente um oficial norte-americano. Ou seja, em uma matemática macabra, um norte-americano equivalia a trinta vietnamitas. E, mesmo assim, o Vietnã somente tinha este espaço de visibilidade midiática porque estava em guerra contra um dos países hegemônicos do período da Guerra Fria.

Em um outro artigo, este publicado para a revista Mediação, da Universidade Fumec, um outro jornalista mineiro, Frederico Duboc, chega a uma conclusão semelhante: a proporção da cobertura jornalística internacional está intrinsecamente ligada ao papel que a nação envolvida desempenha no jogo político e econômico do planeta.

Violência contra civis

Sendo assim, para onde forem os Estados Unidos, seus interesses e seus exércitos, lá estarão milhares de profissionais dos veículos noticiosos prontos a cobrir o que lhes for permitido.

Pois o ano de 2006 não foi marcado somente pelo conflito no Iraque, no Afeganistão e entre Israel e o Hezbollah no sul do Líbano, apesar de ser esta a impressão dada pelos meios de comunicação que constroem o sentido coletivo. Segundo os tais relatórios da ONU e MSF, disponibilizados gratuitamente para quem se interesse, outras tantas guerras, tão ou mais sangrentas que aquelas, estão em curso neste mundo esquecido por Deus.

Na República Centro-Africana, por exemplo, que muita gente nem sabe onde fica, hordas de civis foram vítimas da mais extrema violência em um conflito que já dura 47 anos. Ou seja, desde a independência do país, localizado no coração da África, do domínio da França colonialista. Vilas inteiras foram atacadas, saqueadas e queimadas. Milhares de pessoas forçadas a abandonar seus lares e a se refugiarem no país que lhe faz fronteira ao norte, o Chade, que também tem lá suas mazelas.

No Sri Lanka, o grupo extremista Tigres de Tâmil, considerado o mais violento de todos os grupos extremistas em operação – fato que não deveria ser desprezado – não atrai atenção com sua série de atrocidades cometidas. Lá, a violência contra civis tem crescido assustadoramente.

‘Terra de oportunidades’

A República Democrática do Congo – ex-Zaire – vivenciou suas primeiras eleições democráticas em décadas, depois de uma guerra que durou 40 anos e ceifou a vida de quatro milhões de pessoas. Pois quase ninguém viu – nem os quatro milhões de mortos e nem o pleito. O Brasil, aliás, teve papel fundamental no andamento das eleições congolesas. Quem ficou sabendo? A insegurança no país desestimula a presença de jornalistas e os fatos atrozes, que persistem em uma nação completamente devastada, são, assim, mais facilmente ocultados.

A Somália, que tem um arremedo de governo constituído pela ONU, além de seus senhores da guerra, de um governo paralelo islâmico e uma república separatista denominada Somalilândia, está envolvida em guerras com a sua vizinha Etiópia, a qual briga, por sua vez, com a Eritréia, em uma pendenga territorial e étnica.

Conflitos na nova província de Chhattisgarh, na Índia central, permanecem desconhecidos. Muito além da Caxemira, na fronteira com o Paquistão, esta é uma outra região indiana, com outros confrontos e que já duram, pelo menos, 25 anos. A guerra civil é entre grupos maoístas, forças do exército e milícias anti-maoístas. O Estado é o segundo mais industrializado da Índia – cresce a uma taxa de 9% ao ano e a região é considerada uma ‘terra de oportunidades’.

Dados estão disponíveis

Libéria, Burundi, Serra Leoa, Uganda e Costa do Marfim engrossam as negras estatísticas da morte com as quais o mundo parece não se importar. Na região de Darfur, um genocídio contemporâneo parece não incomodar a ninguém.

Os números destas tragédias são inversamente proporcionais ao de páginas impressas nos jornais. Em um sentido inverso ao da globalização do planeta, algumas localidades permanecem na periferia da história e da mídia.

Um outro estudo, promovido por Jacques Wainberg, professor de jornalismo da Universidade Católica do Rio de Grande do Sul, chega a uma outra conclusão desoladora. Os temas internacionais requerem, por parte do leitor, conhecimento histórico prévio e um esforço cognitivo para sua compreensão. Quanto à preferência da leitura, as notícias do mundo estão em penúltimo lugar, o que contribui para o desânimo da maioria dos veículos em investir neste tipo de cobertura que é, por sua própria natureza, onerosa.

Entretanto, todos os dados que foram apresentados neste artigo estão disponíveis na internet. Há como contatar, por meio dos sítios da ONU e dos MSF, pessoas que estiveram ou que vivem lá e que podem falar sobre o assunto. Há material disponível para acompanhar o andamento dos fatos. É claro que não é a mesma coisa que ver com seus próprios olhos, sentir o cheiro da morte, da desolação e relatá-los. Mas, ainda assim, é muito melhor do que o nada que a gente tem visto por aí.

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Estudante de jornalismo da Universidade Fumec, Belo Horizonte, MG