Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Os dilemas da imprensa no combate à estratégia da dúvida no jogo político

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

O jornalismo vive um complexo dilema profissional e corporativo ao enfrentar a chamada estratégia da dúvida informativa, um recurso usado com frequência cada vez maior por grupos políticos em luta pelo poder na sociedade contemporânea. A dimensão do desafio pode parecer exagerada, mas ele atinge em cheio a credibilidade das mídias, logo, o coração do jornalismo.

Espalhar incertezas é uma velha tática de políticos, mas desde o surgimento da internet ela se transformou numa sofisticada estratégia destinada a minar a credibilidade de personalidades e instituições visando enfraquecê-las politicamente. A disseminação estruturada da dúvida é uma ameaça ao jornalismo porque coloca a atividade noticiosa diante de uma difícil escolha: funcionar como cúmplice ao ignorar a natureza da estratégia, ou desmistificá-la correndo o risco de ser acusada de proselitismo.

É importante ressaltar que duvidar pode ser também uma atitude positiva e faz parte da cultura acadêmica porque está associada à preocupação com a investigação científica. Neste sentido, a dúvida é um comportamento que visa ir além das aparências ou convenções, e não um recurso para encobrir objetivos politicamente inconfessáveis.

A estratégia da dúvida visa desacreditar pessoas e organizações através da desorientação do público por meio da disseminação de versões contraditórias. O manual dos promotores da desestabilização informativa da opinião pública já tem um roteiro padrão. Começa, em geral, por uma denúncia com alguma veracidade, feita por uma personalidade com alguma respeitabilidade e que depois é investigada por uma instituição também dotada de alguma credibilidade.

Verdade disfarçada

Foi o que aconteceu nos recentes casos do Mensalão e da Lava-jato. A suspeita inicial é posteriormente complementada por outras denúncias baseadas em meias verdades que fornecem mais munição para os investigadores, ampliando gradativamente a intensidade da suspeita, até que ela ganhe ares de verdade pelo acúmulo de dúvidas. A destruição de reputações segue este mesmo roteiro.

A frequência e intensidade com que vem sendo usada a estratégia da dúvida como arma na luta pelo poder acabou contribuindo para a sua própria desmistificação, na medida em que especialistas em opinião pública, juristas e cientistas políticos passaram a estudar o fenômeno. As pesquisas contribuíram para neutralizar a principal característica da dúvida, o seu disfarce como verdade, gerando dúvidas sobre a dúvida.

O esquema funciona eficientemente enquanto as pessoas ignoram que estão sendo contaminadas pelo vírus da dúvida ao serem expostas a meias verdades ou fatos descontextualizados. A partir do momento em que o público-alvo se dá conta de que nem tudo o que é divulgado constitui fatos e dados inquestionáveis, a estratégia da dúvida como arma política deixa de ser eficiente e pode até se tornar contraproducente.

É aí que entra o papel da imprensa. Quando jornais, revistas, noticiários radiofônicos e telejornais transmitem conteúdos supostamente noticiosos, gerados pelos promotores da dúvida para leitores, ouvintes e telespectadores, a imprensa age como cúmplice da desorientação informativa, de forma consciente ou involuntária. Boa parte da imprensa brasileira acabou desempenhando este papel quando deu ampla cobertura a denúncias e investigações nos casos do Mensalão e da Lava Jato, que posteriormente acabaram se mostrando infundadas e ilegais.

Mudança de cultura nas redações

Mas a nova realidade surgida a partir dos estudos e pesquisas feitas por acadêmicos e jornalistas, colocou a imprensa diante da necessidade de checar a veracidade e o contexto de todas as suspeitas lançadas contra personalidades, pessoas comuns, instituições e órgãos governamentais que de alguma forma possam contribuir para disseminar dúvidas e desorientação informativa. Caso isto deixe de ser feito, a imprensa contribuirá para a desinformação ao induzir as pessoas ao erro, atentando contra a regra básica de todos os manuais de redação: o compromisso inarredável com o rigor informativo.

Só que ao fazer isto, o jornalismo e a imprensa provavelmente serão acusados de parcialidade e proselitismo pelos protagonistas da luta pelo poder político. Faz parte da lógica destes grupos dividir a sociedade de forma simplista entre simpatizantes e desafetos. Isto implica uma mudança na cultura das redações, nos procedimentos, regras e valores do jornalismo, que deixará de ser um mero observador da realidade para assumir uma atitude proativa ao mostrar como determinados dados, fatos ou eventos estão sendo transmitidos de forma distorcida, intencional ou inadvertidamente.

A checagem de fatos para identificar mentiras ou meias verdades já é parte deste processo de revisão dos comportamentos profissionais antes associados à isenção e não comprometimento com partes em conflito. A checagem é justificada pela necessidade de evitar a desinformação e as notícias falsas com o objetivo de preservar a credibilidade da imprensa.

Só que a estratégia da dúvida levou o processo de manipulação política para um patamar mais elevado. O que passa a ser importante não é apenas se algo é verdade ou mentira, mas a forma como os fatos, dados e eventos estão sendo moldados, disseminados e percebidos pelo público. A imprensa e o jornalismo não devem assumir e nem podem ser vistos como juízes da interpretação dos conteúdos noticiosos.
São parte importante e obrigatória no suprimento de material informativo para que as pessoas tomem suas decisões a partir de percepções o mais próximo possível da realidade. Os jornalistas são um componente essencial no esforço para neutralizar a epidemia da dúvida no noticiário político porque são os profissionais mais preparados, por conta de sua experiência e formação, para lidar com a informação. É função da imprensa e do jornalismo desmistificar o uso da dúvida como arma política.

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.