Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Os donos da floresta e o jornalismo cultural

A ilustração de Luli Penna para o artigo do colunista Marcelo Coelho no caderno ‘Ilustrada’ da Folha de S.Paulo de quarta-feira (30/1), propõe um retrato impiedoso da Amazônia: um tronco serrado no pé – e estamos conversados. Luli desenha seu elemento olhando-o justo no corte, bem de frente para o plano seccional deixado pela motosserra. Com linhas que vão do marrom ao amarelo pálido, a artista descreve os anéis concêntricos e irregulares que denotam a idade da planta.

Nisso se resume seu trabalho. Não há um único traço além da casca. Não há sombras, nada. No alto da página, flutua, levita, bóia a tora maciça, dessas que, fatiadas, rendem tampos de mesa em churrascarias. É uma figura grotesca, solitária, anônima, que, no entanto, representa bem mais que um pedaço de pau. Olhando com atenção, o leitor se dá conta de que aquilo parece um mapa, ou melhor, é um mapa, o mapa do estado do Amazonas sem tirar nem pôr. Metonímia visual: a geografia mais ampla reside em um naco de madeira.

Nas primeiras semanas do ano, quando os jornais trouxeram, por vários dias consecutivos, fotos quase obscenas de terra desmatada por tratores, motosserras e incêndios, Luli Penna rabiscou a imagem que, ao menos aos meus olhos, deu a síntese mais ‘jornalística’ da temporada, a face real da floresta. Essa face é um toco. Um toco sozinho. Esse toco é o mapa do problema. O fim do caminho.

Função da crítica no jornalismo

Entram aí as palavras. Sob a ilustração, vem o título da coluna: ‘Quem disse que é nossa?’. Para Marcelo Coelho, a Amazônia não é nossa coisa nenhuma. Ela é, sim, ‘dos que a invadem e devastam’. O colunista afirma que o governo, as instituições e as autoridades brasileiras não reúnem as mínimas condições de impor a lei na região. Em lugar nenhum, aliás. ‘O poder público brasileiro não consegue sequer fiscalizar e impor a lei dentro dos presídios de segurança máxima…’

O texto lembra que, quando se verificam crimes de genocídio, as forças da ONU intervêm para repor a ordem – e nem por isso uma potência estrangeira passará a se apropriar das riquezas naturais do país sob intervenção. Como ‘o que ocorre na Amazônia tem tudo para ser comparado a um genocídio’, o colunista considera que é, sim, o caso de permitir que representações internacionais fiscalizem de perto o desmatamento desbragado que ninguém aqui tem sido capaz de frear. Não vê outra solução, embora deixe claro que não defende uma internacionalização da área:

‘Concordo que `internacionalização´ é uma palavra forte demais. Sugere a entrega de nossa soberania, sem nada em troca. Outras fórmulas, mais suaves, podem ser concebidas pelos especialistas no assunto.’

Em resumo, essa conversa de que ‘a Amazônia é nossa’ acoberta os beneficiários da destruição e a única saída é convocar órgãos internacionais para ajudar as autoridades locais na vigilância da área.

O colunista define a proposta como uma ‘observação simples e radical’. Alguns, de fato, a tomarão por simplista, experimentando desconfortos os mais variados, mas não há simplismo, ingenuidade ou ‘entreguismo’ no artigo. Bem como na ilustração. Retratando um objeto rudimentar, ela parece, à primeira vista, flertar com algum primitivismo, mas sabe se valer de uma linguagem complexa, tão complexa quanto a questão que ilumina.

Exploremos um pouco mais esse ponto. Nessa página da ‘Ilustrada’, texto e imagem, em vez de se amoldarem ao que é bruto, rude ou inculto, quebram os caixotes do pensamento viciado e apontam, nesses caixotes, o que há, aí sim, de mais selvagem em nosso tempo. Nos caixotes mora a condenação ao imobilismo e à resignação. Texto e imagem vão além do rasteiro e do óbvio e cumprem, assim, uma das funções mais caras e insubstituíveis do chamado jornalismo cultural, ou, em termos mais amplos, da crítica em jornalismo: sugerir abordagens inusuais, capazes de dialogar com outros pontos de vista e capazes igualmente de arejar mentalidades, sem cair na mera reverberação de slogans e no achincalhe das vozes divergentes. O desafio passa por ultrapassar as polarizações abespinhadas, próprias da selvageria.

O leitor deve ter notado que a imagem, em sua economia quase árida de recursos, evita adereços e enfeites que possam significar qualificações, julgamentos, moralizações. Lá está apenas um tronco, que também é um mapa – ou um mapa que é tronco. Da mesma forma, o artigo, ainda que combata os ideologismos e ironize indiretamente as patrulhas – que necessariamente vêm e virão –, não faz uma proposta fechada, doutrinária; seu autor não se lança sobre a platéia como o portador da verdade para ser carregado nos braços da massa. Em lugar disso, pensa fora dos manuais politicamente corretos e pergunta: por que não?

É assim que consegue olhar para um tema desgastado (o desmatamento) sob uma perspectiva que desloca os dogmas (como o nacionalismo tosco) e convida o leitor a considerar alternativas menos convencionais. Nesse sentido, talvez seja possível dizer que o jornalismo tem mais parte com a qualidade da elaboração que brota do debate público do que com o resultado prático final. O que não é ruim.

‘Nossos corruptos são mais patriotas que os honestos que não são nossos’

Combater esse nacionalismo que se põe a serviço dos extrativistas sem-lei é tarefa de utilidade pública e, sem a menor contradição, de alto interesse nacional. Há ranços tribais nesse nacionalismo, que ficam mais nítidos quanto mais nos aproximamos da selva – num sentido ou noutro. A argumentação beligerante – que na verdade é mais beligerante que argumentação – é própria das guerras tribais; não tem utilidade quando se trata de buscar pontes para o entendimento em sociedades de múltiplos sistemas de valores.

É contra o que chamo aqui de ranços tribais que Marcelo Coelho avança:

‘Se governos estrangeiros e entidades internacionais, em concordância com o Brasil, puderem intervir no sentido de fazer da floresta uma região de preservação ecológica mundial, creio que a Amazônia seria mais `nossa´ (isto é, de quem vive lá e não a derruba) do que é atualmente’.

Confesso que, de minha parte, desconfio um pouco desse caminho, sobretudo quando se usa o verbo ‘intervir’. A categoria de observadores internacionais, como os que vão e vêm pelo mundo para acompanhar processos eleitorais, talvez me soasse mais adequada. Enfim, não sei se concordo integralmente com o colunista. Isso, porém, não tem a menor importância para o que discuto aqui. O que importa é que, com seu artigo, ele demonstra a necessidade de uma mudança de foco, e faz isso com tamanha força que não há mais como recusar: esse tipo de nacionalismo tem servido mais para encobrir os criminosos do que para proteger a nação. É como se nós, brasileiros, declarássemos abertamente para o mundo que preferimos os devastadores nacionais aos ecologistas estrangeiros – e que as nossas madeireiras clandestinas são melhores que as organizações internacionais comprometidas com o desenvolvimento sustentável.

O ranço tribal, que recusa a idéia de civilização, tem gerado no Brasil algumas cenas hilárias ou patéticas, como aquelas dos militantes de alguns partidos (tribos?) que afirmam, entre si, a boca pequena, que ‘os nossos corruptos são mais patriotas que os honestos dos outros partidos’. Nessa história toda da Amazônia, poderá acarretar uma tragédia de proporções um pouco mais graves – para os brasileiros, antes de tudo. É por isso que digo que denunciar o ranço tribal não é dar uma de vendilhão da pátria, mas, ao contrário, é servir ao melhor interesse público, nacional e internacional (pois há, sim, um interesse público de âmbito internacional, ainda que incipiente).

A samambaia é de esquerda ou de direita?

Um outro esqueminha intelectual que sai quebrado dessa discussão é aquele que separa todos impasses políticos, culturais e econômicos entre esquerda e direita. Há todo tipo de gente – e de regimes políticos – envolvida no lucrativo negócio de devastar florestas e no esporte de degradar o meio ambiente, assim como há forças de esquerda e de direita combatendo o desmatamento e a poluição dos rios e da atmosfera.

Quando surgiram no espectro político, os movimentos ecológicos bagunçaram os modelos teóricos que separavam o mundo, a vida e o universo em dois compartimentos: esquerda e direita. Esses modelos, que deitavam suas raízes ou no determinismo a que muitos rebaixaram o legado marxista ou no fundamentalismo dos fanáticos da livre iniciativa, conheceram então uma nova crise. Propriedade, classe social e religiões perderam peso, ou, em outras palavras, tornaram-se dados de peso relativo.

O discurso ecológico tem no seu centro categorias menos demarcadas e mais difusas, como a saúde do planeta, visto como organismo integral, e toma como categorias secundárias a classe ou a origem étnica do cidadão. Claro que, hoje, há uma esquerda que diz explicar a ecologia e uma direita que afirma dominá-la, mas o fato é que não dá mais para falar de sustentabilidade rezando apenas pelas cartilhas de uma ou de outra. O principismo não resolve – ainda bem que não resolve – os dilemas pautados pela preservação da saúde ambiental e, a partir disso, o pensamento só pode fluir se aceitar o risco de pisar fora das cartilhas.

Também nisso, o texto do colunista da Folha e a arte que o acompanha compram o risco. Juntos, fazem a imagem que temos da Amazônia se mover – por milímetros, mas ela se move; fazem com que ela se arraste como um velho guarda-roupa, deixando ver as teias de aranha que o prendiam à parede – à parede da ideologia.

Curioso que, entre tanto falatório sobre o assunto, a proeza desse deslocamento tenha se dado numa coluna de cultura, essa ‘retranca’ que agrupa assuntos supostamente menores, aqueles desimportantes, em cadernos apresentados como secundários ou acessórios. Curioso e, ao mesmo tempo, alentador, pois, no fundo de todo o rumor da mídia, o que move o discurso é um ato essencialmente cultural. O jornalismo, posso afirmar, é um aspecto da cultura – jamais o contrário. Logo, engana-se quem acredita que o texto de Marcelo Coelho e a ilustração de Luli Penna tratem de ecologia primordialmente: o que eles problematizam são os modos como o debate público e a cultura absorvem ou repelem o tema da Amazônia. Constituem por definição uma peça de (bom) jornalismo cultural.

Enquanto isso, ainda não sabemos de quem é a Amazônia. Recentemente, li que um sujeito flagrado em intimidade excessiva com o erário municipal teria dito ao interlocutor: ‘Este dinheiro não é de ninguém. É dinheiro público, da prefeitura’ (O Globo, 25/1/2008). Vai ver, os capatazes da motosserra pronunciam frases parecidas sobre a vegetação que pretendem dizimar. Aos olhos deles, as árvores ficam ali de bobeira, dando sopa, largadas, até que alguém chega e toma posse, derrubando uma por uma. ‘Agora sim’ – o sujeito diz lá para o escravo dele – ‘agora a gente pode dizer que elas têm dono.’

É o que ensina a ilustração da Folha, pondo no espaço aquele imponente cadáver vegetal. Por meio de seu trabalho, Luli Penna diz ao leitor: ‘Como disseram que a Amazônia era sua, achei melhor entregar logo a parte que lhe cabe. Bom proveito’.

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Formado em direito e jornalismo pela Universidade de São Paulo, é doutor em Ciências da Comunicação pela mesma universidade e autor de alguns livros, entre eles Sobre Ética e Imprensa (Companhia das Letras, 2000); foi presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007