Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os efeitos do golpe na imprensa brasileira

No dia em que o golpe militar de 1964 completou 45 anos, o Observatório da Imprensa exibido pela TVBrasil na terça-feira (31/03) discutiu os reflexos do período de exceção para a imprensa brasileira. A censura aos meios de comunicação e o cerceamento das liberdades individuais marcaram a ditadura militar instalada na madrugada daquela terça-feira, 31 de março de 64. O golpe deflagrado contra o presidente legalmente constituído João Goulart tinha como objetivo restaurar a disciplina nas Forças Armadas e conter o suposto avanço comunista que ameaçaria a ordem e a segurança do país.


O historiador Marco Antonio Villa participou do debate pelo estúdio em São Paulo. Professor do Departamento de Ciências Sociais e do programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), em São Paulo, Villa é autor de Jango, um perfil (1945-1964). Em Brasília, o convidado foi Ronaldo Costa Couto. Doutor em História pela Universidade de Paris-Sorbonne (Paris IV), Costa Couto é também economista, jornalista, pesquisador e professor universitário. Acompanhou a transição para a democracia e ocupou diversos cargos no primeiro governo após a ditadura militar.


No Rio de Janeiro participou Daniel Aarão Reis Filho, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor titular de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), que atualmente pesquisa a História das Esquerdas no Brasil. Em 1964, fazia parte da diretoria do centro estudantil do colégio onde estudava e já iniciava sua participação na política.


A Mídia na Semana


Alberto Dines comentou as notícias de destaque nos últimos dias na coluna ‘A Mídia na Semana’. O primeiro assunto da seção foi a publicação de um mesmo artigo – tradução de um texto do colunista Nicholas D. Kristof, do New York Times – pelos jornais O Estado de S.Paulo (23/03) e Folha de S.Paulo (29/03). Para Dines, o inusitado fato parece piada. ‘O engraçado é que o texto foi muito comentado no site do Observatório da Imprensa e tratava das vantagens da mídia impressa sobre a digital. Parece que aqueles que fazem jornal não lêem jornal’, observou.


Motivado pela proximidade do dia da mentira, 1° de abril, o jornalista relembrou a edição da revista Veja de 27/04/1983, em que saiu a matéria ‘Fruto da Carne’. Veja inspirou-se em um artigo da revista britânica New Science de semanas antes que, em uma brincadeira de primeiro de abril, inventou um texto sobre a fusão de células animais e vegetais. A editoria de Ciência da revista brasileira não entendeu a piada e publicou a matéria sobre a produção do ‘boimate’, que misturava células de boi com de tomate. Dines comentou que a revista ‘levou a sério’ e ouviu especialistas brasileiros sobre o assunto, mas só desculpou-se com os leitores meses depois, em 06 de julho de 83.


A proximidade do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) da Lei de Imprensa e da exigência do diploma para jornalistas foi o último assunto da coluna. ‘Entram em pauta dois assuntos da maior relevância e ambos relacionados com a liberdade de expressão. Nossa Suprema Corte vai discutir o fim da Lei de Imprensa e também a regulamentação da profissão de jornalista com a obrigatoriedade do diploma. Os dois estatutos foram produzidos pelo regime militar e ambos com defensores nos mais respeitáveis ambientes’, disse.


‘Ditabranda’ vs. ditadura


A Folha de S.Paulo, em editorial publicado no dia 17 de fevereiro deste ano, reacendeu a discussão sobre a ditadura no Brasil ao usar a expressão ‘ditabranda’ para caracterizar o regime militar que vigorou por cerca de vinte anos no país. Os leitores do jornal reagiram imediatamente, enviando cartas e até promovendo uma manifestação em frente à sede do jornal. A comunidade acadêmica também discutiu a polêmica. Os professores Fábio Konder Comparato e Maria Victoria Benevides criticaram o editorial em artigos publicados pelo diário paulista.


A Folha respondeu à polêmica em uma ‘Nota da Redação’ que explicava que a expressão fora utilizada porque ‘na comparação com outros regimes instalados na região no período, a ditadura brasileira apresentou níveis baixos de violência política e institucional’. Para o jornalista Wilson Figueiredo, que foi entrevistado pelo Observatório, o uso do termo não foi ‘uma coisa séria’, mas sim ‘um jogo de palavras’. Segundo ele, a ditadura é ‘inaceitável’ porque ao censurar a imprensa, cercear as liberdades individuais e inibir a atividade política, traz conseqüências imprevisíveis para a sociedade.


O programa também entrevistou o jornalista Marco Antônio Tavares Coelho, que em 1964 era deputado federal. O jornalista relembrou que estava na Câmara dos Deputados na noite de 31 de março, quando foi chamado ao Palácio do Planalto por Darcy Ribeiro, então Chefe do Gabinete Civil. Ao chegar lá, ouviu o político e antropólogo descrever um ‘quadro terrível’ ao narrar os primeiro movimentos do golpe que já estava em curso. Marco Antônio Tavares Coelho disse que Darcy Ribeiro considerava imprescindível uma reação por parte daqueles que resistiam ao golpe: as lideranças sindicais e os comunistas sediados em Brasília. Estes deveriam receber armas do Chefe da Polícia Federal e prender deputados e até ministros do STF. O jornalista recusou-se a participar porque não concordava com ‘nenhuma ação terrorista’ e queria lutar dentro da legalidade. O ex-deputado acredita que o plano de Darcy Ribeiro foi uma ação de desespero para impedir a tomada de poder.


A participação da sociedade civil no golpe


No debate ao vivo, Dines perguntou a Marco Antonio Villa se a tomada de poder foi um golpe ou um contragolpe. O historiador explicou que a conjuntura política entre 1961 e 1964 era complexa, com tendência ao radicalismo e marcada por uma concepção de política de ‘assalto ao poder’. Naquela época, não havia diálogo. Pensava-se: ‘você não convive com opositores, você tem inimigos e inimigos você os elimina’, disse Villa. Foi um período de intensas lutas políticas no Brasil e o historiador destacou momentos como a Campanha da Legalidade, a adoção do Parlamentarismo e, posteriormente, a do Presidencialismo.


A Revolução Cubana de 1959 estava presente e havia uma forte tendência nas elites políticas brasileiras de desprezar a democracia. Este viés estava claro nos setores conservadores que liderariam o golpe, mas também estava presente na esquerda, que desde 1961 trabalhava com uma ‘perspectiva de golpe’. Villa destacou que o golpe foi ‘civil-militar’ e lembrou que quando o ex-presidente João Goulart deixou o poder e rumou para Porto Alegre, a presidência foi declarada vaga pelo presidente da Câmara. Duas semanas depois, o Congresso Nacional elegeu o então general e futuro marechal Castelo Branco. Uma particularidade brasileira.


A disposição intervencionista das Forças Armadas brasileiras é marcada desde o Movimento Tenentista de 1922, segundo Ronaldo Costa Couto. O escritor comentou que a tendência atravessou todo o período e manifestou-se de forma contundente na deposição do ex-presidente Getúlio Vargas, em 1945. Reapareceu após a morte do político, em 1954 e também após a eleição de Juscelino Kubitschek, em 1955. A política ‘salvacionista’ das Forças Armadas ‘vem de longe’ e tornou-se mais forte com a eclosão da Guerra Fria com a disputa ideológica entre socialistas e capitalistas e a polarização entre Estados Unidos e URSS. ‘Eu acredito que 1964 é o ano de 1954 adiado’, disse o escritor.


Diferentes matizes dentro da esquerda


‘As esquerdas, como as direitas, são sempre plurais’, avaliou Daniel Aarão. No conturbado período entre 1961 e 1964 havia dentro das esquerdas brasileiras tendências comprometidas com projetos revolucionários que queriam transformar o país ‘de uma sociedade capitalista em uma sociedade comunista’. Havia diferentes nuances dentro dos grupos de esquerda, mas este era o espírito. Agrupações políticas estavam ‘desencantadas’ com a possibilidade de realizar as reformas por meio pacífico.


Havia a esquerda ‘mais radical’, mas também grupos mais moderados, como a ‘esquerda positiva’, conforme classificou Santiago Dantas, ministro da Fazenda de João Goulart. Para Marco Antonio Villa, a democracia foi a grande derrotada do período. ‘Poderíamos ter buscado uma grande aliança que incorporasse o centro e setores da direita em uma aposta democrática que aprovasse as reformas buscando uma ampla articulação no Congresso Nacional’, avaliou.


O historiador concorda que o golpe foi civil-militar. ‘Não foi uma quartelada típica da América Latina’, explicou, foi um golpe que afetou as instituições, mas apoiado por movimentos sociais de grandes proporções, como as marchas da Família com Deus pela Liberdade. Para refletir sobre a ditadura, disse Villa, é preciso observar a participação dos movimentos socais mais conservadores. A gênese do período de exceção obteve apoio ‘bastante considerável’ da sociedade brasileira, mas com o tempo perdeu o prestígio inicial.


Ronaldo Costa Couto concordou que o movimento militar teve um importante apoio civil. Parte da imprensa, ‘tecnocratas’ e a classe média estavam de acordo com a tomada de poder. O escritor relembrou uma entrevista que fez com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na década de 1980, na qual o então líder sindical comentou que à época dos fatos ‘recebeu o movimento como uma coisa boa para o Brasil’.


Dois pesos, duas medidas?


Um telespectador perguntou aos participantes se a mídia brasileira ‘é mais condescendente com ditaduras de esquerda do que com regimes de direita’. Ronaldo Costa Couto considera que ‘há de tudo’ na imprensa. A partir da promulgação do AI-5, em dezembro de 1968, até a retomada da liberdade de imprensa, em janeiro de 1975, com a suspensão da censura prévia imposta ao jornal O Estado de S.Paulo, a posição da imprensa foi diversificada – da ‘imprensa nanica’, que atuou com coragem e formou opinião, à grande mídia, que inicialmente apoiou o regime militar. ‘A história da imprensa no período é de heroísmo e de enfrentamento, mas também de adesão’, explicou.


Marco Antonio Villa destacou que o único jornal que não apoiou o golpe foi a Última Hora, de Samuel Wainer. Jornais que no final da década de 1960 teriam um importante papel de denúncia e luta para o restabelecimento da democracia, como o Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo apoiaram a queda do presidente João Goulart. Para o historiador, é preciso lembrar que o Estado Novo (1937-1945) também reprimiu a atividade da imprensa de forma severa, mas que o governo ‘foi muito hábil’ na cooptação de intelectuais por intermédio do ministro da Educação, Gustavo Capanema. Daniel Aarão ponderou que a ditadura militar teve uma postura similar de adesão de intelectuais e articulou com meios de comunicação, como a TV Globo.


 


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Golpe, contragolpe ou revolução?


Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 496, no ar em 31/03/2009


Quarenta e cinco anos depois, falta esclarecer quase tudo: foi um contragolpe, golpe de Estado, golpe militar, revolução? A própria data é discutível: o presidente legítimo, João Goulart, deixou a capital no dia 1º de abril, mas aqueles que o derrubaram não queriam que o episódio parecesse uma piada e anteciparam a comemoração para o dia 31 de março.


Mas existem algumas certezas: em 1964 foi instalada uma ditadura e esta ditadura desdobrou-se em várias fases que se estenderam ao longo de 21 anos.


Se a ditadura foi branda comparada com as outras dos países vizinhos, não importa. Foi uma inequívoca quebra da ordem constitucional em que foram anulados os direitos políticos e humanos.


Os argentinos, mais dramáticos do que nós, denominam a década de 30 do século vinte como ‘década infame’. Em nosso caso, as duas décadas dolorosas e humilhantes entre 64 e 85 são classificadas eufemisticamente como ‘anos de chumbo’.


Parece que os brasileiros não gostam da sua história: os 200 anos da imprensa que deveriam ser comemorados no ano passado foram engavetados porque ainda há gente que não quer reconhecer que a inquisição operou no Brasil ao longo de quase três séculos.


A ditadura militar teve o aval da imprensa e quando a imprensa percebeu a enrascada em que se meteu já era tarde. Não foi a primeira vez: o golpe que implantou o Estado Novo em 1937 também foi recebido sem oposição, tal como as violentas medidas de exceção depois da Intentona Comunista de 1935.


A revisão da história não se faz por decreto. A sociedade é quem deve convocá-la. Uma coisa é certa, enquanto não conhecermos os detalhes do nosso passado, estaremos sempre sujeitos a repeti-lo.