Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Os fios do tempo

Amanhã teremos um jornal diferente. Não sei se foi pergunta ou ordem, mas Nascimento Brito aceitou com naturalidade minha resposta. Talvez dentro de alguns anos, disse eu, mas o leitor jamais notará.

8 de janeiro de 1962, duas horas da tarde. Eu estava pela primeira vez na velha redação da Avenida Rio Branco. Chegava praticamente sozinho, sem nenhum projeto grandioso debaixo do braço, munido apenas de uma convicção.

Trinta anos de idade, 10 de profissão, minha escola em jornal tinha sido a de Samuel Wainer na Última Hora do Rio, que levei adiante do Diário da Noite, convertido em tablóide vespertino.

Dia seguinte, terça-feira, o jornal saiu igual à edição anterior, domingo. Esperavam todos as grandes mudanças, imperioso marcar a presença: anunciava-se o retorno dos fios de paginação (que separavam as colunas), o fim dos espaços em branco, como também do L de classificados da primeira página – marcas registradas da reforma gráfica aportada, seis anos antes, pelo grupo comandado por Odylo Costa, filho.

Manteve-se tudo. Houve diferenças, imperceptíveis: um fio fino fixando o logotipo no alto da primeira página, uma manchete de oito colunas, pouco usada, mas rigorosamente dentro dos padrões.

O diagramador da primeira página continuou sendo Amílcar de Castro, inventor do grafismo da era Odylo. Carlos Lemos, editor de Esportes, passou para a Chefia da Reportagem, o L. O. (Luiz Orlando) era o subchefe da manhã. Trouxe comigo apenas o secretário de redação, Wilson Figueiredo, que, na realidade, retornava ao jornal.

Modernidade republicana

Onze anos e onze meses depois, alguma coisa acontecera. O leitor, no entanto, jamais foi surpreendido. Mesmo na edição de 14 de setembro de 1973, quando havíamos sido proibidos pelos censores de publicar em manchete o assassinato de Salvador Allende e fizemos uma primeira página sem manchete, mas contando com grande impacto, em corpo 24 (o maior que a velha Ludlow podia compor), a história daquela violência.

Cheguei com uma convicção em 1962, sai com ela em 1973 e hoje, passados 18 anos, no outro lado do Atlântico, continuo aferrado à mesma idéia. Enuncio-a como um feixe de perguntas, felizmente incapacitado para certezas: o que é mudar, em que consiste avançar, a invenção mais eficaz será aquela vociferada ou a que passa despercebida como o infalível e quieto gotejar da água?

O berro triunfante que acompanha cada tentativa de reinventar a roda, o registro grandiloqüente das fórmulas mágicas, o milagre instantâneo gravado em letras douradas não seriam manifestações do incontrolável terror de sumir?

A profissão, ela própria, hoje transformada em natureza, ensinou-me uma noção do tempo benevolente, nada assustadora. Jornalismo em todos os idiomas e versões está profundamente impregnado do espírito seqüencial, passagem, prolongamento, continuidade. Journal, em francês ou inglês, é diário, Zeitung, em alemão, origina-se de Zeit – tempo.

Nosso ofício que começa e se esgota a cada novo dia é, no entanto, o exercício da permanência, da duração. Por melhor ou pior que tenha sido a edição anterior, o que vale é a seguinte. E depois dela, a outra. É um nunca acabar, ou eterno renascer.

Nas redações os relógios gritam prazos, insistem nas linhas mortas, deadlines, mas também há calendários apontando para a suave acumulação de dias, anos, décadas, centenários.

Como este do Jornal do Brasil. Começou com Joaquim Nabuco mostrando que a modernidade republicana manifestava-se de forma antiliberal. Setenta e sete anos depois (em 14 de dezembro de 1968), numa memorável edição, insurgia-se contra um regime que apoiara – como quase toda a imprensa, aliás – para avisar aos leitores que estava sob censura, portanto deveria ser lido com reservas.

Fios invisíveis

Já foi o jornal das cozinheiras (pelos anúncios classificados que ocupavam quase toda a primeira página) e, em seguida, convertia-se no jornal-modelo, até hoje presente em seus mais poderosos concorrentes.

Vocalizador do concretismo, mas também veiculador do Cinema Novo e da MPB. Jornal de vanguarda, mas também da alma popular, a elegância de escrever estava na política e no futebol, na crônica de Carlos Drummond e na contemplação de Clarice Lispector, na matéria do correspondente de Roma como na do de Goiânia.

Jornal da notícia e da referência, jornal da cidade e nacional, renovou a fotografia, fez renascer a caricatura, cultivava o amor à palavra, inventou a pauta e acabou com ela, organizou-se como uma máquina e, no entanto, tudo fazia para premiar a criatividade. Foi rude e nobre, cometeu deslizes, corrigiu-se, mas sempre teve caráter. Foi às escolas primárias, ensinou jornalismo nas universidades, estava presente nos primeiros grandes desfiles de escolas de samba, mas também nos congressos de psicanálise. Em qualquer circunstância, nunca abdicou da sua razão de ser, a função formadora, cultural.

Ainda não se falava em marketing nem em ombudsman, mas em cada reunião, das muitas que se faziam ao longo do dia, estava sempre presente nosso interlocutor. Não para subjugar ou cobrar, mas para receber aquilo de que carecia para ser uma pessoa melhor. Neste processo ganhavam todos, remetente e destinatário da informação.

Há empresas jornalísticas bem-sucedidas, outras remediadas, mas só se aninham na História os jornais e revistas que se tornam instituições.

O JB pode ser um deles. Quem o fez assim? Todos e ninguém, em partes iguais. Quem faz um grande jornal não são as pessoas que posam, os traços que deixam. Um grande jornal faz-se com a consciência do tempo. Os fios que importam são os invisíveis, aqueles que amarram o leitor e o trazem de volta todos os dias para a maravilhosa aventura de saber um pouco mais.