Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Os limites da solidariedade

A capa da revista Época (‘A força da solidariedade’, 22/1) rende tributo à disposição do brasileiro de ajudar o próximo, especificamente as vítimas da catastrófica chuva de janeiro na Serra fluminense. Bem-intencionada, a reportagem lastreia seu elogio ao comportamento dos voluntários e doadores num substrato científico darwinista positivo: a importância da colaboração para a sobrevivência da espécie. Também a presidenta Dilma Rousseff destacou (no Rio de Janeiro, em 27/1) a solidariedade do povo do país inteiro como algo capaz de comover, após o terrível evento.

Na reportagem da Época são contadas histórias exemplares e é destacado o papel da televisão na mobilização da desinteressada ajuda. Tudo verdade, mas apenas uma parte da verdade. O que não se aborda na matéria (a revista o fez na edição anterior) é a responsabilidade dos poderes públicos.

E o que não se discute em lugar nenhum, nem nos jornais, meios mais capazes de formular as questões importantes nessa dimensão, é o possível (suponho, não afirmo) esvaziamento da ação política pela solidariedade individual ou coletiva. A pessoa ajuda, doa, é voluntária, está feita sua inserção na esfera pública (cada vez mais confundida com a tela de TV).

Se apenas uma fração da energia despendida por essas dezenas de milhares de pessoas que se mobilizaram tivesse como foco a cobrança direta de políticas públicas sérias, as providências para evitar tantas mortes e sofrimento no próximo verão poderiam ser mais expeditas.

A sedução das imagens

A depender do noticiário da televisão aberta, que atinge a massa da população, não acontecerá. Mesmo em face da tragédia, ou mais ainda nesse caso, infelizmente é preciso dizê-lo, a ibope-dependência prevalece. As grandes redes não ignoram a responsabilidade dos detentores de mandatos (e do Judiciário, que não é escolhido pelo povo), mas esse tópico não se compara com tragédia e solidariedade na geração de imagens, sem as quais a televisão, como se sabe, não funciona.

Entretanto, os eleitos têm enorme responsabilidade pelo que aconteceu. O governador Sérgio Cabral Filho, que está no quinto ano de poder, esconjurou essa cobrança quando disse que as culpas não deveriam ser abordadas num momento em que era preciso concentrar todos os esforços na ajuda possível (existe a ajuda impossível, ou insuficiente: aos mortos e aos que os perderam, aos que viram desaparecer tudo, o chão, o teto, a vizinhança, o trabalho). Os moradores em áreas de risco são corresponsáveis, mas num quadro de fragilidade social (ver, neste Observatório, ‘Catástrofes e votos‘).

A própria presidenta tem sua parcela de responsabilidade, porque ocupou posição de destaque no governo Lula, parceiro de governadores e prefeitos em negligências. Mas, ao louvar a solidariedade, Dilma não o fez no vazio. Sua ação política foi anunciar a construção de 6 mil casas para desabrigados. Já tinha anunciado providências para melhorar a prevenção. Antes tarde do que nunca.

Fazer as contas pode politizar

Um caminho possível para os cidadãos solidários entrarem na arena política é querer saber por que algumas doações ‘não estão chegando’. No mínimo, podem fazer perguntas sobre o funcionamento da administração pública, não se acomodar diante de excesso de burocracia e sua irmã gêmea, a corrupção.

Outro caminho é pensar no próprio bolso. Quem doa produtos para as vítimas da catástrofe pagou várias vezes. Só para exemplificar:

** Remuneração dos detentores de mandatos;

** Salários dos funcionários dos três poderes, nas três esferas (no caso do Executivo e do Legislativo; a Justiça é só federal e estadual);

** Dinheiro desviado por superfaturamentos, concorrências e licitações fraudadas, termos aditivos em contratos, funcionários-fantasmas, etc.;

** Recursos para obras de prevenção (parcela menor);

** Recursos para obras emergenciais (parcela maior);

** Impostos embutidos no preço dos produtos comprados para doação.

Em artigo no caderno ‘Aliás’ do Estado de S.Paulo (23/1), José de Souza Martins diz que a catástrofe mobiliza no brasileiro ‘tradições antigas de pertencimento e solidariedade’, mas igualmente dois traços culturais deploráveis, os saques e a especulação econômica (comerciantes que elevam preços de produtos de primeira necessidade, donos de imóveis que majoram os aluguéis).

A televisão tanto mobilizou para a solidariedade como suscitou a execração das vilanias. Mas para que a mobilização tivesse desdobramentos duradouros teria sido preciso mostrar não só a tragédia e seus efeitos como suas causas (des)humanas.