Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os motivos para o choro

Nestes últimos dias, o país mergulhou num clima de comoção, seguido de luto, apreensão, revolta e indignação popular. No centro de tudo isso, o assassinato de Isabella Nardoni, uma criança de apenas cinco anos de idade.

Sem reduzir em nada o peso da tragédia que se abateu sobre várias famílias, causando essa comoção nacional, é preciso suscitar e responder a algumas perguntas que têm que ver diretamente com essa forma de reação do povo ao crime brutal – quase sem paralelos no Brasil de hoje.

É verdade que ‘a morte de uma criança nos fere a todos; é como se, ao mesmo tempo, alguém nos arrancasse um pedaço de nosso próprio futuro e destruísse a fantasia nostálgica da infância, que sempre cultivamos, mesmo que o primeiro período de nossa vida tenha sido infeliz’ [Contardo Calligaris, Folha de S.Paulo, 10/4/2008]. Todos vemos nesta linda e meiga criança, que teve a vida ceifada prematuramente, uma filha, uma sobrinha, prima ou neta. No entanto, ‘morrem duas crianças, como Isabella […] assassinadas por dia no país. E mais milhares de jovens, principalmente pobres, principalmente pretos, nos guetos de nossas metrópoles. Mas por eles e por elas, só choram seus parentes e amigos. Ninguém mais liga a mínima’ [Aidano André Mota, Globo Online, 21/4/2008].

Comoção e raiva

Hoje mesmo, enquanto assistia ao noticiário do telejornal da tarde, almoçando tardiamente como sempre, vi a notícia sendo dada – no estilo ‘vapt-vupt’ – do assassinato bárbaro de um menino lindo, de apenas quatro aninhos de idade, em Bragança, Pará.

Ele desapareceu da casa dos avós no sábado (19) e o seu corpo foi encontrado na segunda-feira (21) em um lago da região, apresentando sinais de abuso sexual. Imediatamente, foi preso um suspeito de ter cometido o crime que, por sinal, conhecia o garoto e era ‘amigo’ da família.

Sendo que, como vimos, não se trata de algo incomum e de caráter inédito aquilo que, infelizmente, aconteceu com a menina Isabella, a pergunta é: o que fez, então, com que este trágico incidente ganhasse contornos nacionais?

As revistas, jornais, o rádio e a TV mal falam de outros assuntos; gente estranha se comove ou se enraivece a ponto de ir à sua missa de sétimo dia ou esperar, horas, diante dos prédios dos familiares do pai e da madrasta da vítima (suspeitos de terem cometido o crime) para os hostilizarem.

‘Esganar e pisar o cadáver’

Tanto quanto a brutalidade insana e injustificável perpetrada contra uma criança dócil e indefesa, o que nos causa repulsa e horror é a atitude troglodita de centenas de pessoas que – no melhor estilo dos hunos, hérulos, ostrogodos e outras tribos bárbaras do passado – querem a todo custo promover a execução dos possíveis criminosos.

Nesse momento, enquanto escrevo, lembro de uma senhora – aparentemente pacata – que faltou ao serviço e fez algumas pequenas viagens dos bairros da periferia de São Paulo, capital, até o ‘epicentro’ da crise.

Diante da TV, aquela mulher simples transformou-se numa leoa indomável e, com todas as letras, disse que queria ‘esganar o Alexandre Nardoni e, depois, pisar em cima do seu cadáver’.

A explosão emocional

Nas palavras de Nelson Ascher, colunista da Folha de S.Paulo, a pergunta, noutras palavras, passa a ser a seguinte: ‘Qual seria a razão para que a maioria, embora disposta a aceitar resignada tantas mortes por doenças ou acidentes mortais como obra do destino, revolte-se diante de uma única, desde que perpetrada por mãos humanas?’ [Nelson Ascher, Folha de S.Paulo, 7/4/2008].

Abrindo um parêntese, peço a compreensão dos leitores porque, neste caso, mais do que elaborar um texto, procuro aqui, neste espaço, montar um quebra-cabeças com a opinião de psicólogos, psicanalistas, criminalistas e jornalistas para tentar obter ao menos algumas respostas plausíveis para aquilo que o Brasil vivencia nestes últimos dias.

‘Crianças continuam, é claro, morrendo diariamente ao redor do planeta, seja de doenças para as quais não faltam prevenção e cura, seja devido à subnutrição ou por causa de acidentes. Mortes assim quase nunca desencadeiam tamanha comoção, algo que não advém, portanto, apenas da extrema precocidade do fim’, lembra-nos Nelson Ascher.

O próprio Ascher, tentando achar respostas concretas, faz suas colocações: ‘Dois elementos ajudam a entender essa explosão emocional. O primeiro é a proximidade. Por mais que os espíritos humanitários a julguem indigesta, a verdade é que uma morte na China nos dói menos que uma no Brasil. Esta nos toca menos que uma no estado, na cidade de São Paulo, no nosso bairro, condomínio e assim por diante, até chegar, mais pungente, ao interior de nossa família.

O mesmo se aplica a grupos étnicos, religiosos, profissionais e a classes sociais. É provável que quem professe o amor fraterno universal lide com seus irmãos como se fossem cifras. O segundo elemento é a intencionalidade que, se provada, configuraria o caráter criminoso da morte.[…] Caso se confirmem as suspeitas, estaremos perante um crime que, para a média das pessoas, é dos mais repelentes que existem, a saber, o assassinato de uma criança indefesa pelos adultos aos quais cabia zelar por seu bem-estar’ [ibidem].

Afetos dolorosos

Antes de continuar, é bom lembrar que Nelson Ascher estava escrevendo no dia 7 de abril, portanto cerca de 11 dias antes do indiciamento do pai e madrasta de Isabella – logo no início das investigações.

Quase por essa época, precisamente no dia 10, a psicóloga Rosely Sayão escreveu sobre ‘tragédias na mídia’ expondo, na sua ótica, os motivos pelos quais este crime mexeu tanto com a opinião pública brasileira, causando tanta comoção.

Rosely parte da questão dos efeitos do noticiário – de forma geral – sobre as crianças. ‘Uma criança, de oito anos, perguntou à mãe se o pai poderia matá-la quando ficasse muito bravo’ [Rosely Sayão, Folha de S.Paulo, 10/4/2008].

E esse não é um caso isolado. Pai de dois garotos, o empresário Maurício de Almeida, 36, conta a resposta que o filho mais velho, de 7 anos, deu depois de receber uma repreensão: ‘Você não vai me atirar pela janela, né?’ [Cláudia Colluci e Vinicius Queiroz Galvão, Folha de S.Paulo, 13/4/2008].

Para Rosely, a grande comoção se deve, em grande parte, a certo rompimento na questão dos valores e segurança dos vínculos familiares: ‘As crianças estão angustiadas com tais notícias porque identificam nelas que os adultos próximos, ao invés de protetores, podem ser ameaçadores. Justamente aqueles em quem elas depositam a maior confiança se revelam, nas notícias, suspeitos de agir de modo contrário’ [Rosely Sayão, Folha de S.Paulo, 10/4/2008].

O psicanalista Contardo Calligaris afirma que ‘a tragédia nos lembra afetos dolorosos que regram nossa maneira ‘moderna’ de casar’. Segundo ele, ‘o casamento ‘moderno’ é um nó de afetos reprimidos, uma convivência explosiva que aposta no amor do casal como se fosse remédio para todos os males.[…] É uma situação trivial: a pensão mensal, as visitas, o padrasto ou a madrasta, os meio-irmãos etc. Mas a banalidade dessa situação não deveria disfarçar o emaranhado de afetos dolorosos que ela produz – afetos que muitos vivem e que todos preferimos esquecer’ [Contardo Calligaris, Folha de S.Paulo, 10/4/2008].

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Jornalista e escritor, Uberlândia, MG