Não foi no mercado, mas no Congresso Nacional, que a economia brasileira recebeu os primeiros impactos perigosos da crise política. Sem comando e com suas forças dispersas, o governo sofreu duas derrotas em dois dias na tramitação de projetos de grande importância econômica. A primeira foi na Comissão Mista de Orçamento, na votação do relatório da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), na terça-feira (9/8). A segunda foi quando os senadores, no dia seguinte, derrubaram o salário mínimo de 300 reais proposto pelo Executivo e aprovaram o valor de 384,29 reais, criando um despesa adicional estimada em 16 bilhões de reais neste ano.
As duas derrotas mostraram que o governo não estava apenas acuado pela crise, sem iniciativas econômicas fora da rotina. Evidenciaram que até a administração do dia-a-dia havia sido prejudicada. Com três comissões de inquérito no Congresso, denúncias cada vez mais graves e a base parlamentar em frangalhos, o Planalto se tornou incapaz de cuidar até de projetos que haviam sido exaustivamente negociados.
No caso do salário mínimo, o governo poderia corrigir o estrago mobilizando forças na Câmara dos Deputados, para derrubar a mudança introduzida no Senado, ou, em último caso, por meio de um veto presidencial. Aí sobraria, talvez, mais um custo político para o presidente e para sua equipe econômica.
Favores oficiais
Quase todos os grandes jornais destacaram a derrota no Senado. O Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo deram manchete. Globo e Valor publicaram chamadas vistosas. A Gazeta Mercantil foi uma estranha exceção. Limitou-se a dar quase no pé da primeira página uma chamadinha meio escondida, com o título ‘Mínimo de R$ 384,29’. Acima dessa notícia havia a informação de que a Helipark, instalada em Carapicuíba, na Grande São Paulo, vai fazer a manutenção dos helicópteros vendidos pela Táxi Aéreo Marília, do Grupo TAM. Arrepiante. Acima dessa veio a notícia intitulada ‘Mary Kay na mídia’, sobre a nova estratégia de marketing de uma fabricante de perfumes e cosméticos. Haja fôlego para enfrentar tanta novidade sensacional.
Só dois grandes jornais, no entanto, deram atenção aos apuros do governo na Comissão Mista de Orçamento. Apenas Folha e Valor noticiam, ambos com destaque, a derrota do Planalto na votação do relatório da LDO e as dificuldades políticas dos ministérios da Fazenda e do Planejamento. A bancada ruralista, sempre competente em arrancar vantagens do Banco do Brasil e do Tesouro Nacional, aproveitou a fraqueza do governo para conseguir a promessa de reescalonamento das dívidas de custeio. Mas foi além disso e convenceu o relator do projeto, o petista mineiro Gilmar Machado, a incluir no texto uma orientação para que o orçamento de 2006 tenha uma verba para renegociação das dívidas agrícolas.
O reescalonamento deste ano é defensável, por causa da seca e de outros problemas graves que afetaram muitos agricultores. Se tivesse chegado antes, a ajuda provavelmente seria menos ampla, mais criteriosa e mais barata. Ao retardar o socorro aos produtores, o governo favoreceu a mobilização comandada pelos grandes devedores, habituados aos favores oficiais. Arriscou-se, além disso, a ter de enfrentar a pressão maior num momento de fraqueza. Não deu outra. Saiu caro, por esse lado, conseguir da bancada ruralista o desbloqueio da LDO.
Áridos e complicados
A outra façanha da bancada, a introdução da cláusula sobre renegociação no próximo ano, pertence a outra esfera: é um lance absolutamente escandaloso, digno de aparecer com destaque nos melhores e mais atualizados manuais do fisiologismo. Por essa cláusula, haverá provisão obrigatória de verbas para o caso de serem aprovadas leis que determinem um amplo refinanciamento das dívidas. Dois projetos com esse propósito tramitam na Câmara dos Deputados.
O ultraje foi tão grande que a votação não foi além do texto básico do relatório. A votação dos destaques, deixada para o dia seguinte, foi suspensa, porque o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, esbravejou.
A melhor suíte do caso, na quinta-feira (11/8), foi publicada pelo Valor. A maioria dos jornais continuou ignorando o assunto, apesar de sua evidente importância econômica e de seu significado político, num momento em que o governo estava no córner. A Folha voltou a mencionar o história da LDO, nesse dia, no meio de um texto mais amplo e centrado no tema do salário mínimo.
Mais uma vez falhou a vigilância da imprensa. Orçamentos e diretrizes orçamentárias podem ser assuntos complicados e áridos na aparência, mas são componentes essenciais da briga política, que o cientista político Harold Lasswell assim resumiu no título de um livro hoje clássico: Política: quem ganha o que, quando e como.
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Jornalista