O ano que passou foi marcado por inúmeros retrocessos. Aliás, se não soubéssemos as datas dos principais acontecimentos de 2017, diríamos se tratar de fatos ocorridos em outras épocas, e não no início do século XXI. Tentativas de censurar manifestações artísticas, posicionamentos racistas, perda de direitos trabalhistas, “cura gay”, flexibilização da fiscalização de práticas análogas à escravidão, desmonte de políticas sociais e ensino religioso confessional nas escolas, entre outros anacronismos, pautaram a agenda pública da sociedade brasileira neste ano. A sensação que temos é que as várias formas de preconceito e todos os tipos de obscurantismo resolveram sair do armário ao mesmo tempo. Dito de outro modo, a “caixa de pandora” do extremismo foi aberta.
As rebeliões ocorridas em presídios de alguns municípios brasileiros, logo em janeiro, trouxeram a impressão de que 2017 seria uma espécie de “2016 parte 2”, pois, conforme aponta um antigo dito popular, “pelo andar da carruagem, se vê logo quem vem dentro”. Não chegou a tanto, mas, certamente, as notícias negativas superaram as notícias positivas. No cenário político, Michel Temer, apesar da extrema impopularidade e das denúncias de corrupção, conseguiu se manter firme na presidência da República. Para tanto, lançou mão de um expediente bastante comum: a compra de parlamentares.
Em 2017, os espaços escolares, que deveriam se constituir em instâncias para a transformação positiva da sociedade, conforme preconizava Paulo Freire, funcionaram, em alguns casos, como mecanismos de reprodução para estereótipos e preconceitos. Duas escolas particulares do sul do país protagonizaram tristes casos de preconceito social. Em uma festa com o tema “Se nada der certo”, alunos do 3º Ano do Ensino Médio de um colégio de Novo Hamburgo se fantasiaram de profissões que julgavam ser a “segunda opção” caso não tivessem êxito na vida profissional. Entre as ocupações (consideradas “socialmente inferiores”) estavam cozinheiro, churrasqueiro, gari, mecânico e atendente de supermercado. Já em Santa Catarina, o convite de uma festa em uma escola solicitava aos pais ou responsáveis para que os alunos do 4º Ano comparecessem “vestidos de favelados do Rio de Janeiro”. Na prática, isso significa reforçar antigos estereótipos que desvalorizam hábitos e vestimentas das populações de comunidades carentes.
Neste ano, as redes sociais foram espaços privilegiadas para exibição da imbecilidade humana. Por ter denunciado o preconceito cotidiano sofrido pelos seus filhos, a atriz Thais Araújo foi achincalhada por internautas conservadores. Em vídeo, uma pseudo-socialite que mora no exterior proferiu palavras racistas contra a filha adotiva de um casal de atores. Provando que a chamada “sociedade do espetáculo” chega a todas as esferas sociais, policiais cariocas tiraram uma selfie coletiva após prenderem o chefe do tráfico de drogas na comunidade da Rocinha. É a chamada “polícia ostentação”. Não obstante, sites bastante acessados, de diferentes tendências ideológicas – como Folha Política, Click Política, Implicante e Plantão Brasil – produziram inúmeras notícias falsas. Não por acaso, o dicionário britânico Collins elegeu a expressão “fake news” como a palavra do ano.
Outros fatos que se destacaram foram a crise da segurança pública no estado do Espírito Santo, a operação “A Carne é Fraca”, da Polícia Federal, responsável pela investigação de algumas das maiores empresas de processamento de carne do país, a primeira Greve Geral no Brasil após duas décadas, a crise fiscal do estado do Rio de Janeiro, as denúncias de assédio sexual envolvendo pessoas famosas, as ocupações de morros cariocas pelo exército, as ações arbitrárias da prefeitura paulista na região conhecida como “Cracolândia” e as condenações (seletivas) de conhecidos nomes da política nacional.
De acordo com reportagem da Folha de S.Paulo, o jornalista William Waack, o ator José Mayer e o fisiculturista Léo Stronda foram, em sequência, as pessoas públicas mais procuradas pelos brasileiros no Google em 2017. Waack foi flagrado em vídeo fazendo uma declaração racista, Mayer foi acusado de assédio sexual por uma figurinista e Stronda teve fotos íntimas vazadas na Internet. É a cultura do grotesco amplamente disseminada na rede mundial de computadores.
Por outro lado, o ano passado também teve boas notícias como as mobilizações femininas contra o assédio sexual, o lançamento do 38º álbum estúdio de Chico Buarque, o levante popular contra a reforma da previdência na Argentina e a publicação do excelente livro “A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato”, do cientista social Jessé Souza, obra que já pode ser considerada como seminal para se entender a sociedade brasileira. Segundo Jessé, “o passado que nos domina não é a continuidade com o Portugal pré-moderno que nos legaria a corrupção só do Estado, como o culturalismo dominante até hoje entre nós nos diz. Nosso passado intocado até hoje, precisamente por seu esquecimento, é o do escravismo. Do escravismo nós herdamos o desprezo e o ódio covarde pelas classes populares, que tornaram impossível uma sociedade minimamente igualitária”.
No âmbito esportivo, em um ano monótono, sem competições importantes como Copa do Mundo ou Jogos Olímpicos, os principais destaques foram a desclassificação da Itália nas eliminatórias europeias para a mundial da Rússia e os títulos continentais de Grêmio e Real Madrid.
No cenário internacional, os principais acontecimentos foram a eleição de Macron para a presidência da França, a eleição de Angela Merkel para o seu quarto mandato como chanceler da Alemanha, os confrontos entre oposição e governo na Venezuela, a tentativa de independência da Catalunha em relação à Espanha, os cem anos da Revolução Russa, as eleições gerais em Cuba, a queda de Mugabe após 37 anos à frente do Zimbábue, a fraude no processo eleitoral hondurenho, o reconhecimento de Jerusalém como capital israelense pelo governo de Washington, a ascensão da extrema-direita na Áustria e os antagonismos entre Estados Unidos e Coreia do Norte, com provocações mútuas entre Donald Trump e King Jung-um. No entanto, conforme pontuou a jornalista Nádia Pontes, no site DW Brasil, o conflito entre o país asiático e a principal potência global foi percebido pela grande mídia brasileira a partir de uma lógica binária: democracia versus ditadura, racionalidade versus irracionalidade, globalização versus isolamento, capitalismo versus comunismo.
Falando em Estados Unidos, no mês de agosto, em Charlottesville, houve a manifestação denominada “Unite the Right” (Unir a Direita), em que grupos supremacistas brancos defendiam ideias antissemitas, homofóbicas e racistas. Menos de três meses depois, em Las Vegas, o contador aposentado, Stephen Paddock, atirou do 32º andar de um hotel contra a multidão que participava de um festival de música, levando a óbito cinquenta e nove pessoas, além de ferir outras quinhentos e trinta. O fato foi considerado como “o maior ataque a tiros da história dos Estados Unidos”. Assim como para nós, brasileiros, este ano também não foi bom para a grande potência global.
Por fim, em dezembro, no apagar das luzes de 2017, houve uma operação da Polícia Federal (PF) na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sob a acusação genérica de desvio de recursos públicos destinados à construção e implantação do Memorial da Anistia Política do Brasil. Oito pessoas, entre elas reitor e vice-reitora, foram conduzidas coercitivamente para prestar depoimento. Todavia, a PF não esclareceu quem seriam os possíveis beneficiados desses montantes desviados. Em entrevista ao portal Brasil 247, a vice-reitora, Sandra Regina Goulart, disse que, durante o interrogatório, o delegado da PF não apresentou qualquer prova, nem mesmo informou nada sobre a investigação, “uma situação assustadora”, declarou. Trata-se, portanto, de uma ofensiva contra a universidade pública, um dos poucos espaços que ainda restam para o exercício do livre pensamento.
Em suma, neste contexto sombrio de radicalismos ideológicos, aumento da intolerância e de inúmeros incertezas, qualquer tipo de retrocesso é perfeitamente possível. Desse modo, esperamos que, para o próximo ano, no mínimo, conforme o previsto no calendário eleitoral brasileiro, possamos escolher democraticamente nossos representantes no parlamento e na presidência da República. Em uma época de judicialização da política, é justo que o povo, e não alguns magistrados, decida quem será o próximo líder máximo da nação.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestrando em Geografia pela UFSJ e pesquisador sobre as relações entre mídia e ensino de Geografia na educação básica. Email: ffernandesladeira@yahoo.com.br