No mês e meio desde a recondução de José Sarney à presidência do Senado Federal, a sequência de irregularidades envolvendo parlamentares e altos funcionários administrativos do Congresso Nacional parece ter exacerbado um dos traços históricos característicos de nossa cultura política, isto é, ‘a desconfiança arraigada em relação à política e aos políticos’ (ver, neste Observatório, ‘`Cobertura adversária´ no Congresso Nacional‘).
Além da reeleição do velho ‘coronel eletrônico’ maranhense, tomamos conhecimento do castelo imperial mineiro do, então, corregedor da Câmara dos Deputados; da mansão de 5 milhões de reais não declarada à Receita Federal do, então, todo poderoso diretor-geral do Senado; da utilização por terceiros de um apartamento funcional destinado ao, então, diretor de Recursos Humanos do Senado e, mais recentemente, do pagamento de mais de 6,2 milhões de reais em horas-extras a funcionários do Senado em pleno recesso legislativo.
Só o negativo
A grande mídia tem sido instrumento importante na revelação pública de ilícitos graves envolvendo representantes eleitos e, também, de altos funcionários do Congresso Nacional. Deputados e senadores têm estado frequentemente envolvidos em atividades criminosas e/ou eticamente condenáveis. Procedimentos de investigação ou processos legais contra parlamentares tramitam tanto nas comissões de ética do próprio Congresso como nas instâncias competentes do Judiciário.
Apesar disso, é inegável que a cobertura política feita das atividades diárias de 513 deputados, 81 senadores e milhares de funcionários do Congresso Nacional se reduz, quase que exclusivamente, a aspectos negativos. Ignora-se, na maioria das vezes, o trabalho sério e honesto realizado nas comissões permanentes e transitórias, nos debates em plenário, na aprovação de legislação e no cumprimento das diversas outras atribuições constitucionais das Casas Legislativas. Ignora-se, sobretudo, o papel fundamental – e insubstituível – que o Parlamento exerce no equilíbrio entre os poderes republicanos.
Desgaste histórico
O desgaste dos Legislativos não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. A competência reduzida em relação à definição dos orçamentos públicos e os instrumentos que permitem aos Executivos ‘legislar por decreto’ têm sido considerados indicadores do declínio do poder – e do prestígio – dos Legislativos nas democracias representativas contemporâneas. Por outro lado, uma das principais funções históricas do Legislativo – a realização do debate político – vem se deslocando, em boa parte, para a mídia, especialmente para a televisão.
No Brasil, apesar de o Congresso ter sido revitalizado pela Constituição de 1988 com a remoção do chamado ‘entulho autoritário’ e do funcionamento, há mais de uma década, de sistemas próprios de comunicação – que incluem emissoras de rádio e televisão –, sua imagem pública se deteriora a cada nova legislatura.
Um Legislativo fraco e sob pressão constante vai perdendo progressivamente as condições de legislar, o que gera conseqüências graves para o funcionamento e a consolidação democrática.
Teria a mídia alguma parcela de responsabilidade na avaliação negativa generalizada que se faz do Congresso Nacional? A quem interessa o enfraquecimento do Legislativo?
Ethos profissional
Não é somente o Congresso Nacional que recebe uma cobertura majoritariamente negativa da grande mídia. Desde o século 19, faz parte do ethos profissional do jornalista se considerar mandatário da missão de ‘erradicar o mal e mostrar as enfermidades sociais’ (ver ‘Escândalos midiáticos no tempo e no espaço‘). No caso brasileiro, os jornalistas como cidadãos foram ademais socializados dentro de uma cultura política que, como já vimos, nutre uma ‘desconfiança arraigada em relação à política e aos políticos’.
Talvez uma outra pista para a compreensão da disputa de poder em jogo – que envolve tanto jornalistas como empresários de mídia – seja a dificuldade ímpar que a regulação do setor de comunicações encontra há décadas no Congresso. Um Legislativo permanentemente ‘encostado na parede’ pela grande mídia teria condições de propor, debater e votar a regulação dela?
De qualquer maneira, para além dos interesses dos empresários de mídia, parece que o pressuposto básico é de que a cobertura negativa do Poder Público não só é parte da responsabilidade profissional do jornalista, mas, sobretudo, deve ser prioritária porque estará sempre contribuindo para a consolidação e o aperfeiçoamento do regime democrático.
Será que é assim que funciona nas tramas do tecido social?
‘Discurso adverso’
Tenho recorrido inúmeras vezes a uma arguta observação da professora Maria do Carmo Campello de Souza (já falecida) sobre a cultura política brasileira feita ao tempo da transição para a democracia ainda no final da década de 1980 (cf., por exemplo, ‘`Cobertura adversária´ no Congresso Nacional‘).
Em capítulo com o título ‘A Nova República brasileira: sob a espada de Dâmocles’, publicado no livro organizado por Alfred Stepan – Democratizando o Brasil, Paz e Terra, 1988 –, ela discute, dentre outras, a questão da credibilidade da democracia. Nas rupturas democráticas, afirma ela, as crises econômicas têm menor peso causal do que a presença ou ausência do system blame (literalmente, ‘culpar o sistema’), isto é, a avaliação negativa do sistema democrático responsabilizando-o pela situação.
Citando especificamente a Alemanha e a Áustria na década de 1930, lembra ela que ‘o processo de avaliação negativa do sistema democrático estava tão disseminado que, quando alguns setores vieram em defesa do regime democrático, eles já encontravam reduzidos a uma minoria para serem capazes de impedir a ruptura’.
A análise que a professora Campello de Souza fez da situação brasileira há mais de duas décadas, certamente mantém a sua pertinência. A contribuição insidiosa da mídia para o incremento do system blame é apontada como um dos obstáculos à consolidação do regime democrático. Vale a pena a longa citação:
A intervenção da imprensa, rádio e televisão no processo político brasileiro requer um estudo lingüístico sistemático sobre o ‘discurso adversário’ em relação à democracia expresso pelos meios de comunicação. Parece-nos, contudo, possível dizer (…) que os meios de comunicação tem tido uma participação extremamente acentuada na extensão do processo de system blame (…). Deve-se assinalar o papel exercido pelos meios de comunicação na formação da imagem pública do regime, sobretudo no que se refere à acentuação de um aspecto sempre presente na cultura política do país – a desconfiança arraigada em relação à política e aos políticos – que pode reforçar a descrença sobre a própria estrutura de representação partidária-parlamentar (pp. 586-7). (…)
O teor exclusivamente denunciatório de grande parte das informações acaba por estabelecer junto à sociedade (…) uma ligação direta e extremamente nefasta entre a desmoralização da atual conjuntura e a substância mesma dos regimes democráticos. (…) A despeito da evidente responsabilidade que cabe à imensa maioria da classe política pelo desenrolar sombrio do processo político brasileiro, os meios de comunicação a apresentam de modo homogeneizado e, em comparação com os dardos de sua crítica, poupam outros setores (…). Tem-se muitas vezes a impressão de que corrupção, cinismo e desmandos são monopólio dos políticos, dos partidos ou do Congresso (…). (pp.588-9, passim).
Riscos para a democracia
É indispensável, portanto, que se busque o equilíbrio na cobertura política. Encontrar o ponto ideal entre a fiscalização do poder público e, ao mesmo tempo, contribuir para o fortalecimento e a consolidação democrática não é tarefa fácil.
Há indicações inequívocas de que a grande mídia brasileira tem atribuído peso significativamente maior à ‘cobertura adversária’ do Congresso Nacional e, portanto, tem ‘participação extremamente acentuada na extensão do processo de system blame‘.
Embora a questão seja delicada e difícil – ou exatamente por essa razão – é fundamental que se realize um debate aberto e franco sobre os limites entre uma cobertura sistematicamente adversária do Congresso Nacional e o descrédito do próprio sistema democrático.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)