Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os Robin Hoods eletrônicos

O presidente dos EUA, George W. Bush, assinou na segunda-feira (13/10) uma lei que endurece bastante a luta contra a pirataria. Criou para isso um órgão específico, à revelia até do Departamento de Justiça. O fato é que a pressão da indústria se tornou insuportável – e a verdade é que não lhe faltam razões para isso. Cópias não autorizadas de filmes e músicas, segundo estimativas dessa indústria, estão custando ao país cerca de 250 bilhões de dólares por ano.

A matéria, no entanto, tornou-se controvertida há algum tempo. A defesa da livre utilização da produção intelectual tornou-se obsessiva, não importando a maneira pela qual essa produção se torne possível. A pirataria passou a ser defendida abertamente até por alguns produtores de conteúdo, inclusive no Brasil, a pretexto de que ela difunde a obra, estimula o consumo e democratiza a circulação da cultura. Em oposição a isso, as campanhas antipirataria promovidas por associações de indústrias, como a MPAA, comparam a apropriação de músicas e filmes com o de qualquer bem material. Roubar um filme é o mesmo que roubar um automóvel, dizem elas. Os opositores dessa visão, no entanto, comparam a pirataria a uma obra social. Piratas, segundo eles, são Robin Hoods eletrônicos. A verdade é que defender o direito intelectual tornou-se, em muitos casos, uma posição conservadora.

Facilidade de copiagem

Isso acontece por uma quantidade de razões. A ganância da indústria fonográfica era uma delas. Deixou de ser depois que o setor entrou em crise justamente pela brusca alteração no modelo de negócios praticado há décadas, por força da facilidade encontrada pelo consumidor final para baixar músicas com a mesma qualidade da matriz. Deixou de fazer sentido comercializar álbuns musicais, como se fazia antigamente. Assim mesmo, há reações mesmo no mundo do rock. Na terça-feira (14/10), o grupo AC/DC anunciou que seu novo álbum, Heavy Ice, será comercializado apenas nas lojas Wal-Mart. O vocalista da banda, Brian Johnson, explicou: ‘Talvez eu esteja apenas sendo antiquado, mas esse iTunes vai acabar com a música, se não tomarem cuidado.’

Johnson referia-se a um aspecto do modelo encontrado para a venda de músicas pela internet: faixas isoladas, descontextualizadas do álbum como um todo. Outras bandas têm feito a mesma coisa, mas vale tudo para induzir o consumidor a comprar o produto antes de baixá-lo gratuitamente num site de compartilhamento. A indústria fonográfica saiu de uma posição arrogantemente ofensiva para uma defensiva quase franciscana.

A mesma facilidade de copiagem – e exploração comercial do produto alheio – foi evidentemente encontrada pelos pequenos comerciantes, que baixam e comercializam esse produto com uma capilaridade que nenhuma indústria legítima consegue alcançar no Brasil – e a preços a que nenhum distribuidor pode evidentemente chegar.

Direitos do consumidor

O consumidor de música mudou seus hábitos – e o mesmo está acontecendo com o consumidor de filmes, sobretudo o consumidor mais jovem, exatamente aquele que a indústria procura alcançar. Para estes jovens, ver um filme é quase sempre sinônimo de baixar esse filme na internet. Estão todos lá, bem antes dos lançamentos comerciais, e ainda por cima com legendas em qualquer língua, ofertadas por um grande conjunto de comunidades que se dedicam a esse trabalho altruísta.

Essa prática pode não representar muita coisa para indústrias, que se amparam em subsídios governamentais ou em leis de incentivo que têm como base a renúncia fiscal – e onde o desempenho do produto, sobretudo audiovisual, tem pouco impacto sobre a sua remuneração. Mas é vital para indústrias que vivem precisamente do seu desempenho – e investem pesadamente na sua produção.

Por isso, há uma crescente reação dos produtores contra a generalização da pirataria e a generosidade com que a sociedade enxerga os piratas. No Seminário de Cultura Iberoamericana, que se realizou de 3 a 7 de outubro na Cidade do México, este foi o tema central dos produtores e distribuidores espanhóis. Numa ação de conjunto, eles não se referem aos distribuidores de cópias ilegais como piratas – mas como ladrões.

Os pequenos comerciantes da esquina transformaram-se hoje em grandes conglomerados, que copiam e distribuem filmes nacional e internacionalmente. Ações para evitar essa prática tornaram-se muito difíceis, tanto no plano tecnológico quanto legislativo. No Brasil, a adoção da TV digital terrestre não logrou implantar os mecanismos anticópia que a indústria pretendia. O argumento é que a proibição de copiagem pelo usuário representa uma violação de seus direitos de consumidor.

Até Bush acertou

A argumentação social é sempre boa. Todo mundo é contra a fome. O problema é que a livre circulação do bem imaterial é desejável, mas a construção deste bem depende da alocação de recursos materiais. É uma equação difícil de resolver, mas é também duro de aceitar que o conjunto da sociedade não tenha direito a casa própria e alimentação adequada. A indústria do entretenimento não é, portanto, o vilão num histórico de desigualdades sociais.

Se trocarmos a expressão ‘entretenimento’ por ‘produção audiovisual’, talvez fique mais fácil perceber o risco que representa para todos o seu enfraquecimento. Essa indústria não é tampouco heroína de coisa alguma, muito menos os que a protagonizam. A legislação de direitos autorais no Brasil é bizarra. Em muitos casos, fere grosseiramente a liberdade de expressão, que deveria ser clausula pétrea constitucional. Mas é difícil, mesmo frente a essas distorções, defender a apropriação indevida da obra audiovisual ou fechar os olhos à ameaça que isso representa – não apenas para os profissionais do setor, mas para a construção de uma cadeia de valores saudável na construção e circulação do produto audiovisual.

A radical criminalização da distribuição e consumo de produto audiovisual não-autorizado tem, portanto, muitas faces. Ser um ato que se origina no maior produtor audiovisual do mundo, cujas práticas de distribuição muitas vezes são nocivas às outras culturas nacionais, representa muito pouco em relação ao seu significado e principalmente ao seu efeito sobre todas as indústrias culturais do mundo. É preciso entender isso, para que não se atrele o repúdio por tais práticas à defesa da pirataria. A outra face é a do esgotamento das ações tecnológicas, que acabaram encontrando nas contra-ações uma paridade que parece não ter fim.

Deixar que o mercado decida costuma ser adequado, mas neste caso o risco é grande demais.

Desta vez, até Bush conseguiu estar do lado certo. A simpatia pela pirataria não socializa coisa alguma. Ela apenas contribui para tornar a produção audiovisual menos viável, seja onde e a que custos ela se dê.

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Jornalista