Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Os sinais de uma aparente contradição

‘O eventual segundo governo de Lula, segundo as pesquisas de hoje, nasceria marcado por uma contradição aguda: teria fortíssimo apoio popular, forte rejeição da opinião pública, escassa base parlamentar e estaria cercado, como hoje, por uma oposição combativa e inconformada’ (O Globo, 27/8)

A especulação acima, de Tereza Cruvinel em sua coluna diária, suscita grande interesse para a análise de mídia, não necessariamente pelo acerto ou desacerto da previsão, e sim pela ‘contradição’, que transcende o caso de um candidato presidencial específico. De fato, contar com ‘fortíssimo apoio popular’ e, ao mesmo tempo, ter ‘forte rejeição da opinião pública’ levanta a questão importante de se conhecer a natureza do ‘público’ que adjetiva essa opinião.

Na verdade, essa questão vem sendo levantada há algum tempo por autores diversos, que convergem para o diagnóstico de que tal ‘opinião’ não passa de um novo tipo de controle social, atinente a um novo regime de visibilidade pública. Por exemplo, o sociólogo francês Patrick Champagne:

‘O que existe não é a ‘opinião pública’ ou mesmo ‘a opinião avaliada pelas sondagens de opinião’, mas, de fato, um novo espaço social dominado por um certo número de agentes – profissionais das sondagens, cientistas políticos, conselheiros em comunicação e marketing político, jornalistas, etc. – que utilizam tecnologias modernas como a pesquisa por sondagem, computadores, rádio, televisão, etc.; é através destas que dão existência política autônoma a uma ‘opinião pública’ fabricada por eles próprios, limitando-se a analisá-la e manipulá-la e, em conseqüência, transformando profundamente a atividade política tal como é apresentada na televisão e pode ser vivida pelos próprios políticos’.

Mas não existe aí nenhuma grande novidade. Há mais de 70 anos, Walter Lippman, um dos mais importantes jornalistas norte-americanos, dizia em livro que a idéia de uma opinião pública informada e capaz de decidir questões e ações seria, em grande parte, uma fantasia desejável, já que a tarefa de dirigir o país é realizada pelas elites. Evidentemente, essa fantasia é alimentada pelas crenças na participação democrática, garantida pelo conceito de representação, isto é, do regime parlamentar em sua atual concretização histórica. A representação popular seria constituída pela soma democrática das opiniões racionalmente traduzidas em votos.

No entanto, dissemina-se hoje o diagnóstico de que seria impossível construir formas de participação democrática a partir do conceito de representação. Continua-se a votar, sim, mas sem qualquer ‘ponta de verdade’, por mera ilusão, como sugeria um editorial do jornal alemão Berliner Zeitung às vésperas de uma eleição nacional:

‘Votar não é um ato ditado pela razão; é a expressão de um sentimento ou de uma ilusão, talvez de uma esperança’ (l5/9/2005).

Debate escasso

Com argumentações diferentes, alguns analistas franceses terminam convergindo para essa mesma sentença negativa quanto à política. É o caso de Jean Baudrillard, ao longo de suas críticas aos dispositivos da modernidade ocidental. Não lhe escapa sequer o supostamente inatacável valor democrático:

‘No momento atual, a democracia é uma forma social mais ou menos tão ancestral quanto a troca simbólica das sociedades primitivas. E nós sonhamos com ela da mesma forma. O político em geral continua a ser o sonho acordado das sociedades ocidentais – das sociedades exotéricas, onde tudo se manifesta pela técnica. O fenômeno é de tal amplitude que a militância da boa causa democrática, voltada para a reabilitação do se poderia chamar de ‘essência’ do político, termina alimentando formas corruptas do social. A esfera econômica deixa cada vez mais claro que as grandes finalidades escapam à lógica do que se vem chamando de política.’

Nesse quadro generalizado, não há como estranhar que a classe política se desligue não apenas das massas, mas também da própria sociedade civil, entendida com a organização da vida social em torno do trabalho. O que antes era debate público converte-se no espetáculo da pacificada imagem pública dos candidatos, ansiosos por compatibilizar-se com a cultura centrista do mercado e da mídia. Na televisão, dificilmente um candidato se arrisca à discussão de problemas candentes, e de difícil solução, a exemplo da corrupção dos políticos ou da criminalidade ascendente.

Em resumo, no espaço global da mídia, pode haver muita informação, mas escasso debate público, isto que, em suas formas vigorosas, foi sempre um requisito da transferência democrática das posições de poder.

Mestre-escola

Olhando-se bem de perto para esse conjunto de fenômenos, não parece tão aguda assim a contradição entre ‘fortíssimo apoio popular’ e a rejeição da ‘opinião pública’ a um candidato presidencial. Na orfandade da representação parlamentar, as massas sempre ‘souberam’ (não por mera racionalidade cognitiva, mas por sentimento) com quem era oportuno estabelecer alianças. Já a ‘opinião pública’ de agora parece não ser muito mais do que um curto-circuito parcial entre mídia e frações de classe média sensíveis (e com justa causa) ao desmoronamento da ética pública.

Talvez pela instintiva percepção disto o candidato à frente nas pesquisas (foi assim com FHC, é assim com Lula) recuse o ‘debate’ televisivo. É a recusa de um nada: o fato de que a classe política tenha perdido o seu locus histórico de mediação das grandes questões coletivas não implica automaticamente que a televisão se torne o grande árbitro da discussão pública.

Tão desalentadora quanto a inaptidão dos candidatos para um debate verdadeiro é a postura de mestre-escola-de-centro-político dos apresentadores das redes de grande audiência, que apenas ratificam a subserviência dos políticos e lhes retiram, aos olhos dos eleitores, quaisquer perspectivas de dignidade decisória.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro