Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Os tiros na telinha e
as cruzes de cada um

O presidente Lula novamente deitou falação sobre mídia, agora na qualidade de crítico de TV. A visita de uma delegação da tradicional Igreja Presbiteriana despertou a sua devoção religiosa: vestiu a armadura dos cruzados da fé e, inspirado pelos arcanjos da retórica sagrada, fez um contundente ataque ao conteúdo da nossa televisão, especialmente dos filmes.


Antes, para não perder o hábito, deu o contumaz escorregão, desta vez em matéria histórica: ‘Não conheço nenhum momento histórico em que a religião encaminhou uma nação à perdição’.


O presidente da República tem o direito de desconsiderar os efeitos da Inquisição portuguesa que, ao longo de 285 anos, manteve sob trevas os dois lados do Atlântico e foi determinante para o nosso atraso em matéria instrução e cultura. Livre arbítrio é para isso: cada um acredita no que lhe convém.


Tiros demais


Mais importante foi a emocionada investida contra o conteúdo dos filmes exibidos na telinha: ‘…se ficássemos sentados na frente de uma TV brasileira e contássemos durante 30 dias quantos filmes falam de integração familiar, amor e paz, perceberíamos que o percentual é infinitamente menor do que filmes que começam com tiro e acabam com tiro’.


O presidente tem razão, mas, se o Executivo fosse mais rigoroso ao fiscalizar a classificação da programação televisiva por faixa etária, os filmes exibidos no horário infanto-juvenil seriam mais apropriados ao gosto do chefe da Nação. Não por coincidência estava presente ao encontro o senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), ex-bispo da Igreja Universal do Reino de Deus. Àquela altura, o presidente Lula já deveria saber da denúncia do Ministério Público Estadual contra o ‘bispo’ Edir Macedo, tio do senador, líder espiritual da IURD e principal acionista do conglomerado Record, que em matéria de filmes violentos não fica atrás das demais redes.


Os ministérios das Comunicações e da Justiça são os principais responsáveis pelas ilegalidades que permeiam o sistema de concessões para emissoras de radiodifusão e acintosamente degradado durante o mandato presidencial de José Sarney (PMDB-AP). O conteúdo pernicioso dos filmes mostrados às crianças na TV é a ponta de um iceberg criado nos porões do Legislativo com o irrestrito aval do Executivo.


O recente pedido de concessão de mais uma rádio ao esquema midiático da família do senador Renan Calheiros (PMDB-AL), conforme apuração da repórter Elvira Lobato (Folha de S. Paulo, 12/8, página A-7), mostra o funcionamento do infalível toma-lá-dá-cá, cujo resultado final tanto incomoda o piedoso presidente Lula.


O arroubo religioso do chefe do Poder Executivo parece ser compartilhado pelo seu colega, o chefe do Poder Judiciário. O ministro Gilmar Mendes está visivelmente incomodado com o movimento secularista e laico que ganha corpo na sociedade brasileira, visando a completa separação entre Religião e Estado.


Palpiteiro-Geral da República


Assumindo-se como palpiteiro-mor da República, o presidente do STF agora rebela-se contra a ação do procurador regional dos Direitos do Cidadão, Jefferson Aparecido Dias, que move uma ação para retirar os símbolos religiosos das repartições públicas federais de São Paulo.


O ministro Mendes acha que existem assuntos mais prementes para cuidar e, inexplicavelmente bem humorado, faz blague: ‘Tomara que não mandem derrubar o Cristo Redentor do Rio de Janeiro’ (Estado de S.Paulo, 12/8, página A-11).


O meritíssimo sabe que o Corcovado não é repartição pública, quer apenas tumultuar e ridicularizar um antigo movimento social, sério e legítimo, que visa tornar efetiva a separação entre os poderes secular e espiritual prevista em nossas Cartas Magnas desde 1891, porém jamais concretizada. Como guardião do espírito e da letra da Constituição, o presidente da suprema corte deveria tratar com o devido respeito um dos itens fundamentais da Declaração Universal dos Direitos Humanos.


Deveria também fazer um supremo esforço para aparentar um mínimo de coerência, pelo menos em matéria legal. Por um lado aferra-se em justificar a censura prévia determinada pelo desembargador Dácio Vieira do TJ do DF contra o Estadão, sob a alegação de tratar-se de uma decisão judicial que deve ser confrontada nos tribunais. Mas não aplica o mesmo critério à ação civil pública de autoria do Procurador dos Direitos do Cidadão em defesa do Estado laico e soberano. Por que não espera que o caso seja decidido nos tribunais, ao invés de pronunciar-se extemporaneamente, sem examinar os autos?


Gilmar Mendes anda muito distraído: esqueceu que o desembargador Vieira afrontou uma cláusula pétrea da Constituição – a liberdade de expressão – e também não reparou que o procurador Jefferson Dias defende outra cláusula pétrea da nossa Carta – a liberdade de crença.


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Festa na Terra dos Papagaios: bandalhos, escorraçados e estróinas estão de volta, soltos, desinibidos, truculentos, performáticos. O histrionismo de Collor de Mello contra a imprensa e contra os jornalistas que o defenestraram tem uma cor inconfundível: marrom.