Pedicuros no Brasil não costumam ler o New York Times. Portanto, não há de ter sido por causa da reportagem ‘Hábito de beber do líder brasileiro torna-se preocupação nacional’, do correspondente Larry Rohter, publicada sábado no site do jornal e domingo na edição impressa, que naquele primeiro dia uma podóloga de São Paulo, falando mal do presidente Lula a uma cliente, saiu-se com a seguinte tirada: ‘E ainda por cima ele bebe.’
Perguntada como sabia disso, contou ter ouvido de dois clientes, ambos empresários, que haviam visto o presidente em Brasília ‘sob a influência’, como dizem os americanos. Um deles chegou a se referir ao seu hálito.
Os empresários podem ter exagerado ou mentido. Mas uma coisa parece certa: o que a nota do Planalto sobre a ‘reportagem caluniosa’ do Times chamou eufemisticamente ‘os hábitos sociais’ do presidente está na boca do povo.
Sabe-se disso em todas as redações. Sabe-se também que formam uma ‘legião’, como escreveu Rohter, medindo as palavras, ‘as histórias de episódios de bebida envolvendo Mr. da Silva’.
Tem aquela do banho de chuveiro a que foi preciso recorrer numa capital do Nordeste para que um evento publico pudesse cumprir-se como programado.
Tem aquela do governador de Estado que, numa conversa de happy hour, se espantou com os termos usados em um relato sobre as servidões do poder.
Tem aquela do ministro que, numa conversa noite adentro, observou a regularidade do abastecimento.
Os ‘hábitos sociais’ de Lula podem ser, como diz a nota do governo, ‘moderados’. Podem também ser iguais aos ‘da média dos cidadãos brasileiros’. Mas, desde 1º de janeiro de 2003, Luiz Inácio Lula da Silva pode ser tudo, menos um brasileiro médio.
‘Jornalismo marrom’
A mídia, de seu lado, deixou as águas rolar, preferindo a abstinência. Compreensivelmente até, a chamada imprensa de qualidade não conseguiu resolver o dilema de como tratar dos hábitos de um brasileiro incomum (em mais de um sentido).
Prevaleceu o entendimento implícito de que uma matéria sobre o fato de o presidente apreciar um trago seria não apenas uma invasão de privacidade, mas, pior ainda, um ato impatriótico – o de expor um aspecto do modo de ser do chefe do governo, com todas as imagináveis conseqüências negativas para a sua imagem, a estabilidade do seu governo e o respeito que o país vive buscando.
De mais a mais, quem poderia provar que uma determinada decisão de Lula foi tomada ‘sob a influência’? Ou, por outra, não parece ter ficado claro que beneficiaria o interesse público uma reportagem sobre o que, quando, quanto e com quais conseqüências o presidente bebe.
No mínimo, precisaria acontecer algo suficientemente grave para substituir o bem-intencionado silêncio por uma reportagem factual e objetiva sobre o problema – porque, nesse caso, ficaria evidenciado que problema existe.
À falta disso, sobreveio o pior (antes da matéria de Rohter): as alusões e indiretas, neutras, umas; maliciosas, outras; definitivamente grosseiras, outras ainda.
Nesta última categoria, figuram as do colunista Cláudio Humberto, citado pelo correspondente do Times (sem lembrar, porém, que foi porta-voz de um presidente destituído pelo Congresso e cujos alegados hábitos também rendiam uma ‘legião’ de histórias).
Rohter destacou duas manifestações da mídia respeitável brasileira sobre Lula e a bebida. Por ordem cronológica, um artigo do ‘irritante’ colunista Diogo Mainardi, na Veja de 24 de março, e uma matéria da repórter Fabiane Leite, na Folha de S.Paulo, de 5 de abril.
O colunista, depois de aconselhar o presidente a ‘parar de beber em público’, reproduz, sem identificar as publicações, notícias sobre Lula ‘acompanhadas por detalhes de suas preferências alcoólicas, independentemente do tema tratado’.
O tom geral do comentário é ponderado, menos no fecho, onde o autor bate pesado: ‘Lula fracassou até agora em todas as áreas. (…) Parando de beber em público, ele finalmente seria recordado por algo de bom’.
Já repórter, a propósito da intenção do governo de regulamentar as bebidas alcoólicas, ouviu especialistas brasileiros e estrangeiros sobre ‘uma possível associação da imagem do presidente ao álcool’.
O texto ressalta que Lula fuma escondido, para não dar mau exemplo, mas não ‘usa o exemplo para ensinar que beber tem o seu momento e lugar’, nas palavras de uma socióloga da Universidade de Washington.
Para este leitor, a passagem mais importante da reportagem é esta: ‘Procurada (…), a assessoria de Lula solicitou perguntas por e-mail, mas não as respondeu’.
Sem falar no que isso evidencia de pouco-caso com a sociedade, a omissão é importante por sugerir que o governo não sabe lidar com a questão.
Rohter escreve que ‘porta-vozes de Mr. da Silva se recusaram a discutir os hábitos de beber do presidente on the record, dizendo que não iriam dar respeitabilidade a acusações sem base com uma resposta formal’.
‘Numa breve mensagem de e-mail’, acrescenta, ‘desprezaram as especulações de que ele bebe em excesso como ‘um misto de preconceito, desinformação e má fé’.’
A nota do Planalto, divulgada domingo, iria muito mais longe, classificando a reportagem de ‘texto digno da pior espécie de jornalismo, o marrom’ – o que ele não é – e de ‘tentativa esdrúxula de colocar em dúvida o profundo compromisso com as instituições e a credibilidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva’ – o que é menos ainda.
(O Times registrou o protesto, publicando um seco despacho de 185 palavras da agência Reuters.)
‘Como uma bomba’
A matéria de Rohter não é nenhum Prêmio Pulitzer. Essencialmente, não prova que o ‘hábito de beber’ de Lula ‘se torna preocupação nacional’, como se lê no título em duas colunas, no alto da página 6 (ao lado de uma foto do presidente, com chapéu tirolês, erguendo uma caneca de cerveja na Oktoberfest de Blumenau, no ano passado).
Além disso, não se sabe de onde o correspondente tirou a informação de que ‘sempre que possível’ a imprensa brasileira publica fotos do presidente ‘com os olhos injetados ou com o rosto afogueado’.
Outra inverdade está em ele escrever que ‘constantemente’ a imprensa faz referência aos churrascos de fim de semana de Lula, ‘quando o álcool corre solto’, e aos eventos de Estado ‘em que Mr. da Silva nunca parece estar sem um drinque na mão’.
A imprensa noticia os churrascos e os eventos públicos de que Lula participa por uma variedade de razões. O consumo de bebida não é ‘constantemente’ uma delas.
O melhor trecho da reportagem são os quatro parágrafos em que, depois de registrar que poucos líderes políticos e jornalistas se dispõem a expressar em público as suas apreensões sobre o consumo de álcool do presidente – embora falem disso entre si ‘cada vez mais’ –, Rohter cita Leonel Brizola.
O ex-aliado de Lula, repetindo o que já dissera em pelo menos uma ocasião, conta tê-lo advertido dos perigos dos destilados (o ex-governador aprecia vinhos) que ‘destroem os neurônios do cérebro’.
Segundo Brizola – ‘imitando a voz rascante do presidente’ – Lula teria respondido que a coisa está ‘sob controle’. Mas o entrevistado observa que ‘se bebesse como ele, estaria frito’.
De fato, é comum ouvir-se que Lula bebe mais do que moderadamente. Ouve-se também que Lula teria baixa resistência à bebida. Ele ‘segura mal’, ao que se diz.
Entre o domingo e a segunda-feira, a imprensa brasileira em geral tratou do caso como quem pisa em terreno onde o tráfico plantou as minas antipessoais roubadas do Exército no Rio. A exceção foi a Folha de S.Paulo. Dos três grandes jornais, foi o único a dar a devida importância à questão. Só ela transcreveu o NYT na íntegra, além de chamar o assunto na primeira página nos dois dias, logo abaixo da manchete.
‘‘NYT’ diz que Lula abusa de álcool; governo nega’, sobre 18 linhas de coluna, no domingo. ‘Para governo, reportagem do ‘NYT’ é caluniosa’, sobre 15 linhas, na segunda. Dentro, meia página no domingo e 2/3 de página no dia seguinte.
No Estado de S.Paulo, as chamadas, sem texto e em fonte leve, foram escondidas no pé da coluna, nos dois dias. A primeira página do Globo ignorou o assunto no domingo e na segunda.
Dentro, o jornal carioca deu no domingo uma materiola de cinco parágrafos, sob o título enigmático ‘Governo analisa se vai processar jornalista do ‘Times’’ – menos informação ainda do que o Estado ofereceu no quarto de página, abaixo da dobra, intitulado ‘‘NYT’ afirma que presidente bebe demais’.
Na segunda, enquanto o Estadão dava meia página ao caso, com a íntegra da nota do governo, o Globo continuou a sepultar a história e a ecoar a posição do governo. Como nos títulos ‘Reportagem do ‘NYT’ sobre Lula é digna de jornalismo marrom, diz Planalto’ e ‘Gushiken reage ao ‘New York Times’’, este na coluna ‘Panorama político’.
O ministro da Comunicação do governo, por sinal, foi citado como tendo dito, por meio da assessoria, nada menos que ‘indiretamente o artigo pode estar a serviço de posturas de governos centrais que desprezam a soberania alheia, buscam interferir em questões internas e tentam impor uma visão unilateral sobre questões que, num mundo cada vez mais complexo, exige outra ética de solução para os conflitos’. Ufa!
O que tem a ver o supremacismo da política americana – à qual, aliás, o NYT se opõe consistentemente – com uma reportagem sobre Lula e a bebida escapa à compreensão deste leitor.
O resumo da ópera, porém, é claro: assim como o governo, a imprensa brasileira não soube lidar com os ‘hábitos sociais’ do presidente nem antes nem imediatamente depois da matéria de Larry Rohter – que, segundo Fernando Rodrigues, da Folha, ‘caiu como uma bomba nos bastidores do poder’.
Não que seja fácil. Mas o risco é o assunto ficar quente demais para tanta inibição – e tão pouca iniciativa.
[Texto fechado às 19h03 de 10/5]