Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os três tempos do fato

Ação, coisa feita, acontecimento, episódio. Assim definido pelo dicionário, o fato pode se apresentar à nossa consciência em pelo menos três tempos distintos. O primeiro é o da sua ocorrência, instante que marca o momento exato em que ele ingressa no mundo dos fenômenos, imenso oceano em que navegam todos os eventos. É aí que o fato ganha materialidade. Geralmente, quando o nosso contato com o fato se dá nessa primeira fase, somos sujeitos, testemunhas ou vítimas diretas do acontecido.

Raros são os fatos que se libertam da irrelevância social a que quase todos estão submetidos para viver o seu segundo tempo. Uma maioria expressiva deles nasce, cresce e morre sem merecer qualquer registro no âmbito da vida pública, o que é reservado a poucos e bons. A maior parte não influencia no destino da sociedade humana, limitando-se a atuar em âmbitos privados. Muitos parecem meras repetições do que já houve antes. Milhares são esperados ou previsíveis e a eles não se dá a menor importância, ainda que possam conter segredos impressionantes e revelar encantos e tragédias surpreendentes.

Somos naturalmente seletivos na hora de definir o que realmente deve ser levado em conta ao longo de nossa jornada sobre a Terra. Vencer a luta pela sobrevivência exige empenho e dedicação e, por isso, não é recomendável dispersar esforços e desperdiçar energia.

Regras técnicas e normas éticas

O segundo tempo do fato só começa a ser contado para aqueles que superam o rigoroso teste da relevância. Para ser admitido nessa segunda dimensão temporal, o fato deve ser capaz de produzir alguma perturbação, ainda que superficial, no estado predominante das coisas. É aí que ele é flagrado: pelas conseqüências e impactos que o seu surgimento provoca.

Esse segundo tempo começa quando sobre o fato se debruçam olhares atentos e interessados, capazes de diferenciá-lo dos demais, enxergando nele potenciais ou ameaças incríveis, considerando-o, inclusive, apto a alterar biografias e, em alguns casos, o curso da história. Este é o momento em que o fato é examinado e explorado em suas possibilidades e em seus mistérios. É aí que o fato vira objeto de atenção. Para o cientista, é a hora da pesquisa. Para a polícia, é a hora da investigação. Para o jornalista, é a hora da apuração.

O terceiro tempo do fato – e a partir de agora só se abordará o trabalho da imprensa – corresponde ao processo em que a sua substância original se conforma ao universo jornalístico e que o seu teor é lido à luz de uma sintaxe e de uma gramática específicas. É aí que o conteúdo do fato passa a ser tratado de acordo com regras técnicas e normas éticas próprias, ganhando ares imponentes, repercussão geral e caráter comunitário. Ao fruto daí advindo chamamos notícia.

Rastrear a trajetória

A notícia, porém, é maior que o fato. Ela é a narrativa produzida sobre ele, a partir do ponto de vista de seu autor ou da instituição ou empresa em que ele trabalha. A notícia é construída a partir de um discurso e de uma ideologia. Se emitida de acordo com padrões elevados, ela guardará grande fidelidade em relação aos aspectos genuínos do fato, coletados pelos cinco sentidos de nosso aparato sensorial. Se gerada com intenções escusas, seu vínculo com a matéria-prima é frágil, sua conexão com a fonte é tênue. E é aí que mora o perigo.

Em razão de tudo isso, se você, por acaso, desconfiar de alguma notícia levada ao seu conhecimento, não tenha dúvida: sendo possível, tente rastrear a trajetória do fato, percorrendo seus três tempos, no sentido inverso, do terceiro até o primeiro. Muitas vezes não há outra saída: é necessário desconstruir a notícia para recuperar o conhecimento sobre o fato.

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Advogado, jornalista, mestre em Direito Internacional pela UFMG e doutorando em Direito Internacional pela Universidade Autônoma de Madri