O menino Ramon Fernandes da Silva, de 6 anos, esperava pelo pai, na porta de sua casa, quando começou uma operação policial na favela do Muquiço, em Guadalupe, subúrbio do Rio. Atingido por um tiro, morreria dois dias depois.
O fato mereceu pequeno registro no Globo, em 29 de junho: ainda assim, uma reprodução de matéria do Extra, do mesmo grupo editorial, com foto documentando o protesto dos moradores na Av. Brasil – pessoas gritando a esmo, um rapaz sem camisa, de boné e bermudas, sendo contido por uma gravata, policiais fardados apontando fuzis para manifestantes dispersos.
O episódio não teria grande repercussão mesmo, pois tiroteios em favelas já são vistos como banais e a morte de crianças por ‘balas perdidas’ se tornou rotina: uma espécie de ‘dano colateral’ na ‘guerra do Rio’. Além disso, o caso seria obscurecido pelo assassinato do jovem Daniel Duque, de 18 anos, à saída de uma boate em Ipanema, na madrugada seguinte. Não era só uma questão de classe: as circunstâncias, os desdobramentos e as implicações do fato praticamente impunham o destaque. O jovem foi morto por um policial que fazia a segurança do filho de uma promotora, cuja família está há anos ameaçada de morte – e a reação imediata do procurador-geral de Justiça, considerando ‘bastante coerente’ a versão de legítima defesa do policial-segurança, provocou a previsível indignação de articulistas e leitores.
(A legenda da foto de capa do Globo de 2 de julho, sim, era questão de classe: ‘a tia de um menino morto por bala perdida e a mãe de Daniel Duque se encontram em protesto contra a violência’ diante do Palácio Guanabara. A tia do menino é negra e tem os cabelos precariamente esticados para trás; a mãe do rapaz é loura e bem penteada. Ambas se tocam e choram, igualam-se na dor da perda, mas o menino da favela é apenas um menino sem identidade, mais um entre tantos cujo destino parece traçado conforme a origem social e o local de moradia.)
‘Quem precisa de bandidos?’
Então, de repente, um caso ganha a manchete de todos os jornais cariocas: a morte do garoto João Roberto Soares, atingido dentro do carro de sua mãe, confundido por policiais com o veículo que eles estavam perseguindo, no início da noite de domingo, numa das mais movimentadas ruas da Tijuca, na Zona Norte. A ação foi documentada pela câmera de vídeo de um prédio: o carro da mãe do menino encosta na calçada, o carro da polícia pára logo atrás, os policiais descem correndo e começam a atirar. O menino é alvejado por três disparos, um deles na nuca, é imediatamente levado ao hospital, mas morre na manhã seguinte. Ia completar 4 anos no fim do mês.
Na terça-feira, dia 8, a imprensa em peso expõe o fato aberrante. ‘Pai acusa PM de metralhar carro da família e matar filho’, destaca O Globo, afirmando no subtítulo: ‘secretário admite que policiais se confundiram e diz que ação foi desastrosa’; ‘A política do atira primeiro e pergunta depois’, acusa o Extra, antes da manchete: ‘Olha só quem a PM trata como bandido’, sobre a foto de álbum de família, o menino sorridente ao lado do irmãozinho bebê; o ‘popular’ Meia Hora relaciona várias manchetes envolvendo policiais em crimes e pergunta, em letras brancas sobre fundo preto: ‘Com mocinhos assim, quem precisa de bandidos?’; JB, O Dia e o tablóide Expresso reverberam o protesto do pai: ‘Que polícia é essa?’
O ‘inseticida eficaz’
A pergunta volta e meia aparece nos jornais e se repete ao longo dos anos com a mesma resposta: esta é ‘a polícia que mata’. E esta polícia mata porque é criminosa e irresponsavelmente orientada para o confronto, sob o aplauso entusiasmado desta mesma imprensa que agora se derrama em lágrimas e acusações: esta imprensa que sempre clamou pela ‘mão pesada do Estado’ contra o crime, que desdenha dos ‘manuais de sociologia ligeira’ para o enfrentamento das questões sociais e bate diariamente na tecla do nosso estado de ‘guerra’.
Se jornais de referência como O Globo já são pouco sutis, ‘populares’ como o Meia Hora não têm mesmo qualquer limite e, entre o escárnio e o elogio à barbárie – o que freqüentemente é a mesma coisa –, chegam ao cúmulo da conivência explícita com a política de extermínio. Um exemplo particularmente escandaloso foi a edição de 17 de abril, quando aquele jornal explorou o comentário supostamente espirituoso do coronel Marcus Jardim, responsável pelo policiamento da capital, que aproveitara a epidemia de dengue na cidade para declarar: ‘Os marginais são os mosquitos do mal’, ‘o policial é um saneador’. O Meia Hora, então, achou engraçado reproduzir na capa a foto de um frasco de inseticida, acrescentando uma letra a uma conhecida marca do produto para jogar com o slogan da propaganda: ‘SBPM, terrível contra os marginais’, ‘eficaz contra vagabundos, traficantes e assassinos’. Para completar, o título ‘criativo’: ‘Bopecida, o inseticida da polícia’. Abaixo, a informação: ‘Ontem, na Penha, pacientes com dengue ficaram na linha de tiro durante confronto na Vila Cruzeiro.’
Uma menina do Brasil
Entre maio e julho do ano passado, no mesmo local, o inseticida já havia entrado em ação, deixando dezenas de mortos em três meses de ‘ocupação’ no Complexo do Alemão – 19 num único dia.
Em outubro, outra façanha, dessa vez na favela da Coréia, produzindo a cena chocante do extermínio de dois prováveis bandidos, metralhados por um helicóptero enquanto tentavam fugir, correndo feito baratas tontas num descampado. Doze pessoas morreram na operação ‘saneadora’: dez ‘supostos traficantes’, um policial e um menino de 4 anos.
Agora, o inseticida age no asfalto, atingindo outro menino que estava às vésperas de completar essa mesma idade.
Mas os jornais falam apenas em despreparo da polícia. E, naturalmente, não fazem autocrítica. Editorialete do Globo de 9 de julho reitera ‘a opção do governo estadual por uma política de confrontação com os criminosos’, ‘correta na essência’. É claro que o crime da Tijuca só poderia ser resultado da ‘insanidade de dois policiais militares’. Apenas ‘uma ação desastrosa’, como disse o sempre inabalável secretário de Segurança; apenas o resultado da irresponsabilidade individual de dois ‘débeis mentais’, como disse o governador – esse mesmo governador que declarou ser a favela uma ‘fábrica de marginais’ e avisou que a população da Zona Sul precisava acostumar-se ao ‘stress da guerra’.
Na segunda metade dos anos 80, Moreira Franco foi eleito governador com uma promessa sob medida para manchete de jornal: acabar com a violência em seis meses. Inaugurava a política de confronto em tempos de democracia. Não demorou muito, uma menina que brincava distraída no morro do Tuiuti morreu em meio ao fogo cruzado entre policiais e bandidos. Chico Buarque fez dela um símbolo: uma menina igual a mil, que não está nem aí. Uma menina do Brasil, do morro do Tuiuti.
Agora que a morte do menino da Tijuca desperta comoção pública, o menino do Muquiço merece finalmente uma foto de capa no Dia, que recorda ‘outras vítimas’ da PM.
E assim, um a um, nossos meninos distraídos vão caindo, embalando essa absurda melodia, enquanto os exterminadores do futuro continuam a operar.
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Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)