Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os ninjas, a mídia convencional e o Brasil

Parafraseando Zuenir Ventura e o parafraseadíssimo título do seu livro sobre meia-oito, 2013 é ano que entra na história brasileira para demorar a sair. Muitas mudanças, em várias áreas. Quando achamos que começamos a entender um pequeno pedaço das transformações em curso, vem outra surpresa, e assim, entre sobressaltado e esperançoso, o Brasil se redescobre sem saber ainda se será capaz de se reinventar.

Termos antigos ganharam novos significados: vinagre, rua, PT, PSDB, partidos, Rede, líderes, gigante, tarifa zero… Novas expressões se incorporam ao vocabulário cotidiano: black bloc, pós-anarquismo, pós-TV, pós-jornalismo e, o que mais interessa aqui, Mídia Ninja.

Do ponto de vista da comunicação, os ninjas são o grande lance do momento. E estiveram no Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, (veja aqui a íntegra), num encontro que convida à reflexão jornalistas, cientistas sociais e todos os interessados em compreender o país ora sob sacolejo e as alterações que as novas tecnologias produzem no modo como as pessoas consomem e produzem informação.

Inspirado pelo programa, mas não se restringindo a ele, arrisco algumas conclusões – ainda que provisórias – a respeito de certas questões que neste momento conquistaram relevância no debate sobre política e comunicação.

Sejam bem-vindos, ninjas

Pra começo de conversa, devemos saudar o aparecimento da mídia ninja no mínimo pelo aspecto democrático. A sociedade sempre sai ganhando quando emergem novas vozes na comunicação. Sobretudo quando elas possibilitam renovar a linguagem ou a organização de trabalho.

No caso em questão, há principalmente duas novidades.

A primeira está no elevado interesse despertado por um conteúdo que em geral se limita a transmissões ao vivo, feitas por celular através de conexões de baixa qualidade. Esse formato relativamente tosco de jornalismo chegou a atrair simultaneamente mais de 100 mil pessoas ao disseminar imagens das ruas do nosso quentíssimo inverno tropical.

A segunda é o jeito que os caras encontraram para fazer esse troço. O nome é um charme. Ninja é a sigla para Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação. Mais bacana que ela, no entanto, é a ousadia de fazer isso por meio de uma rede de voluntários, espalhados nacionalmente, que se soma aos jornalistas do grupo – em geral, bem jovens.

Não foi à toa que a mídia ninja virou notícia nos principais veículos jornalísticos do mundo.

Contradições ninjas

No Roda Viva, tarimbados jornalistas não tiveram dificuldades para trazer à tona certas contradições ninjas.

A mais óbvia, relacionada com as finanças que sustentam o grupo. A mídia ninja não tem receita própria, mas custeia suas despesas (compra de equipamentos, pagamentos a jornalistas) com a grana do Circuito Fora do Eixo, movimento cultural organizado, em geral associado ao PT, concentrado principalmente na realização de festivais independentes de música pelo país afora e que está longe de ser uma unanimidade entre artistas e produtores. Pablo Capilé, coordenador do Fora do Eixo, se enrolou bastante ao explicar como funciona a parte financeira do movimento, que abrange, segundo ele, 200 coletivos, em torno dos quais atuam cerca de 2 mil pessoas. Não deu para entender a maior parte de suas explicações. De concreto, a informação de que faturaram ano passado mais de R$ 3 milhões, recursos provenientes da venda de ingressos para eventos, de doações e de um patrocínio da Petrobras (que já repassou ao Fora do Eixo R$ 800 mil).

Também soou estranho o Capilé negar ter uma relação privilegiada com o PT quando é tratado publicamente como “gente nossa” pelos próceres do partido, incluindo o ex-presidente Lula e o presidente nacional, Rui Falcão.

Uma terceira contradição explorada pelos entrevistadores é de natureza mais complexa. Diz respeito ao grau de engajamento dos ninjas. Alguns deles chegaram a ser presos durante os protestos por se confundirem, aos olhos da polícia, com manifestantes mais violentos (incluindo os mascarados adeptos da tática black bloc). Não porque aprovem a depredação, mas por usufruírem junto a eles de uma proximidade negada a quase todos os demais veículos. O que permitiu aos ninjas estar em alguns locais – como prédios públicos ocupados – fora do alcance dos jornalistas da mídia que chamaremos aqui de convencional. Tal proximidade não tiraria a credibilidade do jornalismo que fazem? Cadê a imparcialidade ninja?

A mídia convencional

Em contrapartida, Capilé e o outro entrevistado, Bruno Torturra, foram felizes em mostrar as contradições dessa mesma mídia. Depois de passarem grande parte do programa questionados insistentemente sobre sua falta de transparência e suposta parcialidade, devolveram a acusação aos seus entrevistadores.

E onde está a imparcialidade da TV Cultura, que no passado puniu a independência de Heródoto Barbeiro?, perguntaram. (Heródoto foi afastado da mediação do mesmo Roda Viva depois de irritar o ex-governador José Serra com indagações sobre os valores estratosféricos dos pedágios de São Paulo). Onde a transparência dos veículos convencionais se eles não deixam claro suas escolhas partidárias e comerciais? Se várias vezes eles tratam de forma diferente PT e PSDB?

Torturra, jornalista que disse não ter vínculos com o Fora do Eixo, cuidando apenas da mídia ninja, deu prova de transparência pessoal ao admitir ter sido um dos fundadores da Rede da Marina Silva e estar acompanhando à distância sua evolução, indicando não ter muita convicção quanto à qualidade do que sairá daí.

Ele e Pablo Capilé contribuem para o debate sobre os rumos da comunicação quando buscam não só uma nova forma de narrar fatos, mas também um novo modelo para financiar o jornalismo. Que, segundo eles, deve passar pelo pagamento feito diretamente pelos usuários que acessam o conteúdo e pelo acesso a recursos públicos. Embora seja discutível se o dinheiro governamental dará mais independência a alguém do que os recursos de empresas privadas, por que não tentar?

O fato é que alguns dos entrevistadores – todos reconhecidos pela competência – deixaram trair, na minha modesta opinião, algum incômodo com os ninjas e o que eles representam. Por um lado, sim, uma relação pouco clara com $$$ e PT. Por outro, também, o destemor de desbravar novas estradas “narrativas”, fazendo-o com estrondoso sucesso de audiência.

Perfeita, a meu ver, a ponderação de Torturra (encampada no ar pelo professor Eugênio Bucci) de que o tal “vandalismo”, incessantemente invocado por alguns veículos, é fenômeno bem mais complexo do que sugerem tais meios de comunicação. Acrescento. Como podemos tachar de “vândalos”, “baderneiros” ou “marginais” pessoas que sequer tiveram a oportunidade de ser ouvidas?

Esperança renovada

O fato é que terminei o programa, pelo qual a TV Cultura e todos os participantes merecem reconhecimento, mais otimista do que comecei. Pessoalmente, acho que o “melhor jogador em campo” estava na bancada dos entrevistadores. Foi o veterano Alberto Dines, criador do Observatório da Imprensa, que aos 81 anos continua pagando um preço alto pela coragem com que leva para a mídia debates sobre a própria mídia.

Dines, mesmo quando expressa opiniões diferentes das nossas, é sempre o mestre que nos faz pensar. Como ontem à noite, ao lamentar a omissão da imprensa brasileira em defender o Estado laico (crítica que cabe, inclusive, a este Congresso em Foco).

Uma pessoa octogenária que mantém o vigor intelectual e profissional de um jovem é algo inspirador. A disposição de Torturra para abrir o coração em público é, além de inspirador, algo bonito e desconcertante.

O debate acentuou em mim a convicção de que o melhor jornalismo anda lado a lado com o compromisso social. Foi assim com os grandes jornais, em especial o Jornal do Brasil e o Estado de S. Paulo, que souberam aliar a qualidade jornalística com a escolha do lado mais inglório durante o regime militar: o lado dos que se opunham ao arbítrio imposto pela força e pela tortura. Ou com a variada e criativa imprensa alternativa que floresceu sobretudo nos anos finais da ditadura. Ou com a Folha de S. Paulo dos anos 1970 e 80, que, primeiro, levou pluralidade e inteligência para as páginas de opinião e, depois, a audácia de se engajar no movimento pelas diretas-já, também na contramão do poder.

O Brasil de 2013 é um poderoso convite para que todos nós – jornalistas, veículos e profissionais de comunicação em geral – lembremos que jornalismo é, acima de tudo, serviço público. Quando o público começa a botar fogo nos carros das empresas em que trabalhamos ou a nos hostilizar com palavras e gestos, é porque, apesar dos nossos melhores esforços (porque ô turminha que rala…), o nosso show não está agradando. Por que será?

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Sylvio Costa é jornalista, criou e dirige o Congresso em Foco