O caderno Aliás da edição de domingo (24/9) do jornal O Estado de S.Paulo apresentou entrevista de duas páginas com o colunista Arnaldo Jabor. Aproveitando o gancho do sucesso do recém-publicado livro de Jabor – segundo o jornal, há três semanas Pornopolítica lidera a lista de best-sellers de não-ficção –, o Estadão se serve da voz do ‘mais estridente colunista político do país’ para reafirmar posições e conceitos conservadores próprios.
Em princípio, nada de errado em expressar opiniões e visões de mundo pela imprensa, ainda que se faça parte dela. A democracia pressupõe pluralidade de vozes e sem dúvida a imprensa exerce – ou pelo menos deveria exercer – papel importante na canalização dessas vozes pela esfera política. É neste sentido então que este observador busca dar publicidade a outras vozes, aparentemente há muito esquecidas por Jabor – e, o que é pior, pelo Estadão.
Supostamente, Arnaldo Jabor é aquele comentarista perspicaz, atento e único. Detentor de visão aguçada e análise inusitada, inesperada e diferenciada do cotidiano político. Na prática, a entrevista se converteu em profusão de pensamento hegemônico, disfarçado sob o argumento da autoridade, o ‘eu sei porque já fui assim’ do antigo militante comunista. A opção política preferencial é deixada bem clara e, pasmem, está em sintonia com a do Estadão. Mas é o conteúdo e a validade factual das justificativas desta opção que convém aqui questionar.
A opção pelo PSDB
Além de vários elogios ao PSDB e seus políticos, distribuídos pelas respostas, quando questionado sobre a existência de uma nova esquerda Jabor traça uma linha de argumentação que merece transcrição integral:
‘Sim. É representada por pessoas como Fernando Henrique, José Serra, eu mesmo. Ou personalidades como (Franco) Montoro. Olha, Marx dizia o seguinte: `Eu não sou marxista´. O verdadeiro homem de esquerda está sempre se adaptando às mudanças históricas em busca do bem da sociedade, da qualidade de vida das pessoas, da justiça. A esquerda moderna não é feita de fé, é feita de lógica.’
Qual a conclusão que se pode tirar? A opção pelo PSDB não é política, ideológica, valorativa. É simplesmente uma questão de raciocínio lógico. Resultado de um cálculo racional objetivo. Jabor ignora que a maior expressão do projeto neoliberal no Brasil se deu na gestão FHC, simbolizada nas privatizações. Aplicada ao espectro político-ideológico, mesmo com o eixo partidário claramente deslocado para a direita, como no caso brasileiro, dificilmente a gestão do PSDB se configuraria como de ‘esquerda’, nova ou velha.
Criticando os intelectuais que apóiam Lula, Jabor discorre:
‘Mesmo quando atacam o governo pela esquerda fazem isso com velhos argumentos. Reclamam da economia, quando ela foi a única base concreta que impediu que o Brasil fosse para o brejo. E o país não vai para a frente por quê? Porque não fizeram as reformas que complementariam o Plano Real.’
Obviamente, o único aspecto que para o comentarista salva o governo Lula é justamente aquele em que o PT foi mais parecido com o governo de FHC, a política econômica.
Sobre o PT e Lula
‘Não percebem que o processo brasileiro se aperfeiçoaria se houvesse mudanças na burocracia, nas instituições, no Código Penal, no Judiciário, se houvesse reforma previdenciária, tributária…’
Ora, seria mero esquecimento ou desonestidade intelectual do entrevistado? O governo Lula promoveu a reforma da previdência, para a decepção de amplos setores de sua base de apoio que, além de greves e manifestações, cantavam no dia da aprovação do projeto a simpática e marcante cantiga: ‘Você pagou com traição, a quem sempre lhe deu a mão’. A reforma do Judiciário e a reforma tributária também foram, pelo menos em seus embriões, enviadas pelo governo ao Congresso. Alguns pontos foram efetivados, como a questionável súmula vinculante, e outros ignorados, menos pela vontade do governo do que pela dos parlamentares e prefeitos.
‘Recusam aceitar a evidência, dolorosa ou não, de que o capitalismo está aí, de que não há outro sistema funcionando. A incapacidade de aceitar o mundo real é terrível.’
Aqui, há dois pontos problemáticos. Primeiro, algumas medidas do governo Lula têm orientação claramente neoliberal – como a reforma da previdência citada anteriormente –, o que é um indicativo de que o capitalismo está mais do que ‘aceito’ pelo PT e por Lula. Segundo, e mais importante, a incapacidade de aceitar o mundo real não é terrível, ela é o primeiro passo na mobilização em busca de um mundo melhor.
Ou se crê que vivemos num país perfeito que não precisa melhorar em nada? Que não só a sociedade brasileira, mas praticamente o mundo inteiro, é hegemonicamente capitalista e funciona de acordo com mecanismos de mercado todos sabemos. ‘Aceitar’ esse fato não significa considerá-lo natural, automático ou irreversível. Ele é, acima de tudo, uma opção política. Há uma diferença abismal entre constatar um fato e aceitá-lo passivamente. Isso não se aplica somente à relação entre capitalismo e socialismo. Se Jabor realmente apreciasse a lógica saberia que todos constatamos que há práticas corruptas no governo Lula, mas que nem por isso devemos aceitá-las.
Criticando as políticas sociais do governo, Jabor afirma:
‘O que há é a utilização de dinheiro público para botar panos quentes num problema grave. Redistribuição de renda e combate à miséria só se fazem com crescimento econômico.’
É claro que os repórteres do Estadão não avisaram a Jabor que o crescimento econômico no período FHC – 2,3% na média dos oito anos – foi tão medíocre quanto o de Lula – 2,5% na média dos três primeiros anos. E também que no regime militar – tão combatido por alguns cineastas do Cinema Novo – o Brasil teve anos de crescimento econômico elevado e que nem por isso houve distribuição de renda ou combate à miséria.
Sobre o discurso petista de ‘golpismo’ da direita, cutuca:
‘Olha aí a velhice do pensamento. O que é a direita? É Newton Cardoso e Jader Barbalho, que estão abraçados com Lula.’
Ainda sobre petistas e as relações com a democracia, continua:
‘Porque velhos comunas têm o tumor inoperável na cabeça. Eu os conheço, já fui um deles. Esse tumor é a certeza da superioridade sobre o resto da humanidade. Eles são narcisistas, paranóicos, incultos, acham que precisam arruinar por dentro essa coisa chata chamada democracia.’
Novamente, Jabor esquece de maneira conveniente que os aliados da direita de Lula hoje foram aliados de FHC antes. E que o grande aliado do PSDB de hoje é o PFL, nascido do ventre da Arena, partido de sustentação do regime militar autoritário. Parece esquecer também figuras como o senador Antônio Carlos Magalhães, um dos líderes do governo Fernando Henrique no Congresso, que no dia da invasão da instituição pelo Movimento de Libertação dos Sem-Terra, conclamava os militares a que tomassem o poder para ‘acabar com a bagunça’.
Psol e Heloísa Helena
‘Uma loucura, uma histeria como qualquer outra, a utopia da utopia. Acham que podem fazer uma revolução socialista nos moldes tradicionais.’
Novamente, o comentarista mostra desonestidade intelectual. Ora, se querem uma revolução socialista nos moldes tradicionais, o que fazem nas eleições? Pelo contrário, qualquer um que acompanhe as declarações de Heloísa na imprensa já a ouviu comentar diversas vezes que não acredita que verá o socialismo em vida, ‘nesta estrutura anátomo-fisiológica’, diria a senadora. O que é um indicativo de uma perspectiva socialista contemporânea, que reconhece que a transição para o socialismo não poderá ser alcançada de maneira simplificada com uma revolução violenta, mas sim que é um processo longo, gradual, dinâmico e complexo, com avanços e recuos.
Senhor da verdade
O apelido irônico de ‘Senhor da verdade’ veste bem o comentarista. O da verdade fabricada, construída pelos grupos dominantes da sociedade, formadores do que o teórico italiano Gramsci, citado por Jabor na entrevista, define como hegemonia coletiva, ou seja, o controle do plano ideológico e cultural por um grupo social que impõe suas visões de mundo e interpretações da realidade para o conjunto da sociedade.
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Estudante de Ciência Política (UNB) e Jornalismo (UniCEUB), Brasília