No processo de aprimoramento das instituições brasileiras a grande imprensa começou a ficar para trás. Dá a tentação de dizer, sem nenhuma base científica, que a imprensa está num plano semelhante ao do Poder Legislativo, da Polícia ou da Justiça.
A apuração competente faz e fez muita falta: à boca pequena já se sabia de muita coisa, e ninguém, antes ou depois de Carlos Chagas na Tribuna da Imprensa, em fevereiro de 2004, e do Jornal do Brasil em setembro do mesmo ano, deu nada até que malandros brigassem e os esquemões do PT e da chamada base aliada em estatais e outras instâncias de governo se tornassem públicos. Isso para não falar no caso de Santo André, que antecede a própria eleição de Lula.
Na crise do "mensalão" a mídia trabalhou bem em vários momentos com informações alheias, embora tenha aceitado a tese maluca segundo a qual tudo o que os Robertos Jeffersons da vida dizem acaba se comprovando verdadeiro. Exemplo positivo foi dado ainda no domingo (21/8), no Estado de S. Paulo. Uma entrevista de Luiz Maklouf Carvalho com um integrante da direção nacional do PT dá uma boa pista para a história dos dinheiros delubianos e valerianos: caixa para a campanha de José Dirceu em 2010. É uma acusação, precisa ser provada, mas ajuda a pensar. E não é em off.
A mídia trabalhou bem, em alguns poucos casos, com apuração própria. Teve a necessária cautela durante boa parte do tempo. Mas a partir de um determinado momento soltou as rédeas. E, no último fim de semana, capotou na primeira curva fechada. Entre sexta-feira (19/8) e domingo todos os grandes veículos caíram no mais irresponsável jornalismo declaratório. "Buratti diz, Palocci diz, Lula diz".
O cadáver de uma reportagem
A imprensa às vezes é um tigre de papel. Ou, se preferirem, um tigre digital. (Que a frase não vá sem manifestação de antagonismo visceral à figura de Mao Tsé-Tung e ao maoísmo.)
Quando o fim de semana começou, Antonio Palocci estava na lona, e Lula ia junto. Uma coluna produziu no Globo de domingo esta pérola: "Mais cedo ou mais tarde, o país entrará no pós-lulismo e no pós-PT". Quem vai dizer que não, "mais cedo ou mais tarde"?
Quando o fim de semana terminou, o vilão da história tinha colocado os mocinhos para correr, sem dar um tiro. Um Matar ou Morrer às avessas. E os mocinhos tinham desistido de disparar – ou seja, de fazer perguntas inquietantemente pertinentes. Em outro contexto, seria cômico.
O cadáver da reportagem da Veja baseada em tráfico barato de informações que pretendia acabar com Palocci está estendido no chão, e vários colegas deste Observatório já o dissecam desde a manhã de segunda-feira. No próprio site da revista a reação do público mostra quem levou a melhor no duelo. Numa enquete que tinha 7.360 respostas na noite de segunda-feira (22/8), 57% diziam que Palocci foi convincente durante a entrevista de domingo.
Vai aqui uma pergunta que alguém deveria ter feito antes da fechar o texto da reportagem que mereceu a chamada de capa "Denúncias atingem Palocci": para que o ministro da Fazenda precisaria de um equipamento de escuta telefônica? Para ouvir e gravar o quê? Mais grave, mas omitido em todos os telejornais de segunda-feira que trataram do assunto, foi a revelação de Palocci de que seu chefe de gabinete contestou a informação em e-mails que a Veja simplesmente ignorou.
Os telejornais de sexta-feira e as edições do fim de semana foram açodados, levianos, embarcaram em denúncias vagas e mal formuladas. Os próprios repórteres que escreveram sobre o depoimento de Rogério Buratti fizeram questão de dizer que ele não apresentou provas das denúncias mais graves que fez. Mas não. Os editores não deram bola. Registre-se que a revista Época se desgarrou dessa manada.
Há denúncias sérias contra Lula e Palocci
Antes que alguém se assanhe, este texto não é uma defesa do governo Lula ou da atuação do ministro Palocci. Aqui o assunto é jornalismo. Fazer essa crítica ao trabalho da mídia não significa dizer que o PT (e não apenas alguns indivíduos), o governo e o presidente Lula não cometeram irregularidades, ou não fugiram aos padrões de comportamento ético que apregoaram ao longo dos anos.
Os dólares na cueca, as revelações feitas por insiders como Delúbio Soares, Marcos Valério de Souza e Duda Mendonça, as renúncias de José Genoíno e José Dirceu, o rebaixamento de Luiz Gushiken, as notícias sobre charutos, bebidas e garotas de programa, dezenas e dezenas de podres trazidos à tona – em poucos casos por investigação jornalística, embora em muitos casos só tenha faltado se esfregarem na cara dos jornalistas – balizam os contornos de uma grande maracutaia. Mas a maneira como cada um dos personagens ou grupos se relaciona à maracutaia, ou pratica irregularidades, varia enormemente. E na política, portanto no jornalismo político, essas diferenças são relevantes.
Do ponto de vista jornalístico, publicar informações que não se sustentam é desastroso. Quando há difamação, desastroso para reputações. Mas sempre desastroso para a credibilidade, maior patrimônio da imprensa séria.
O ministro Palocci, pelo seu papel central desde que substituiu na campanha de Lula o prefeito assassinado de Santo André, Celso Daniel, não está tão isento de responsabilidades pelos malfeitos no PT e no governo como deu competentemente, na exemplar coletiva de domingo, a impressão de estar. É impossível ser tão importante no partido e no país e ignorar tanta coisa escandalosa.
Isso se aplica, com mais razão, ao presidente da República. O presidente talvez seja quem menos manda – havia aquele dito segundo o qual "prefeito manda, governador pensa que manda e presidente, nem pensa" –, mas o presidente é quem mais sabe.
Promotor não tem a última palavra
Dito isso, o maior erro da mídia foi receber informações de um promotor no meio de um depoimento sem se questionar sobre a licitude disso. Para começar, algum jornalista no local deveria ter perguntado: "O que o senhor está fazendo é correto?" E mesmo que a resposta fosse sim, na edição teria sido necessário ouvir alguém que chancelasse ou não esse comportamento. E mais: a maneira de trabalhar com a denúncia envolve a visão que o veículo tem do processo, uma convicção, uma sensibilidade política. Isso faz parte do processo de edição, e não apenas sair correndo para "dar na frente".
Como continua sendo necessário agora, mesmo com as declarações do procurador-geral de São Paulo, Rodrigo Pinho, de um ex-ministro do Supremo, Sidney Sanches, do governador paulista Geraldo Alckmin e do deputado Michel Temer (PMDB-SP), entre outros que avalizaram o comportamento dos procuradores de Ribeirão Preto. Essas figuras públicas não são a instância com maior autoridade para se pronunciar.
Se, por uma combinação de convicções ou de interesses, for aceita a tese de que é válido promotor deitar falação, novos problemas virão, como advieram de abusos cometidos no passado por parlamentares – entre eles, notoriamente, José Dirceu e Aloizio Mercadante – com a conivência de procuradores.
Lembram-se do delegado de polícia do caso da Escola Base? Ele tinha ou não direito de dizer quem eram os suspeitos? Por que as vítimas da denúncia falsa já ganharam em segunda instância processos contra veículos de comunicação?
Em três dias, não houve uma editoria capaz de consultar algum especialista. O único ouvido, pelo Estadão, foi o advogado de Rogério Buratti, Roberto Telhada, que disse ter se afastado da causa por não concordar com o que seu cliente decidira fazer.
O mesmo vale para o vídeo exibido pela Rede Globo. Tudo que entra numa redação vira letra de forma ou aparece na telinha? Ou será que a proeza deve ser debitada à conta do vale-tudo dos "furos" criados pelo clima histérico das CPIs? Um jornalista eminente da Globo, Franklin Martins, escreveu no recém-lançado Jornalismo Político:
"E assim, aos poucos, passa-se da caça ao furo para a caça às bruxas. No afã de ser o primeiro a dar a notícia, vai-se baixando a guarda. Já não se checa a informação como antes. E, à medida que a bola de neve vai ganhando velocidade, sai de baixo. Suposição vira informação; indício converte-se em prova; suspeito passa a ser bandido; e a dica, que em condições normais seria o ponto de partida da matéria, pode acabar como manchete do jornal".
A Folha de S. Paulo de sábado (20/8) mencionou o vídeo insinuando que ele seria explicado pela necessidade de comprovar que o depoente disse o que disse. Isso significa que não se deve confiar em depoimentos dados a procuradores? Chame o ladrão! Ou os procuradores e o próprio Buratti resolveram deixar filmar porque o advogado foi embora?
Nada disso foi esclarecido e o mais estanho é que não haja registro de crítica por parte das emissoras concorrentes da Rede Globo. Implicitamente, é como se dissessem: da próxima vez, se eu conseguir, dou primeiro.
E aqui, insista-se, não se trata de dizer que não houve corrupção na prefeitura de Ribeirão Preto durante o mandato de Antonio Palocci. São questões de método, a cada instante do processo de apuração dos fatos. Por sinal, cabe registrar que o ministro se houve tão bem na coletiva de domingo que a nenhum jornalista presente ocorreu fazer certas perguntas suscitadas pelas acusações de Buratti. Sobre uma suposta contribuição de associações de bingos para a campanha de Lula, por exemplo.
Democracia tem rito
Na opinião de um amplo espectro de forças (alguns dirão que são só as que a mídia seleciona em sua conspiração a favor do governo, porque ele agrada as elites), Palocci é o que há de melhor no governo Lula – o que não quer dizer, é preciso ainda uma vez insistir, que ele não seja politicamente solidário com malfeitos do PT e do governo.
Mas quem tem o mandato é Lula, e é seu mérito, aceitas as premissas do raciocínio, apoiar uma política que, mais do que de Palocci, é de um conjunto dominante de forças políticas e sociais. Palocci não é insubstituível nem insinuou qualquer tipo de chantagem no altar da estabilidade. Mas tirar Palocci do governo hoje é deixar as mais sérias diretrizes de Lula expostas a forças que querem obrigá-lo a romper o compromisso assumido em meados de 2002, na "Carta aos Brasileiros". Forças que não estão só na esquerda ou à esquerda do PT, longe disso. Se a inflação está sendo derrotada no plano dos fundamentos da economia, ainda estão longe da derrota as forças sociais que se beneficiaram longamente dela, fora e dentro do Estado, contra o povão. O mesmo se pode dizer da abertura da economia e da responsabilidade fiscal.
Os editores dos veículos que resolveram embarcar numa linha golpista – golpista do ponto de vista jornalístico, porque trabalharam com acusações, suposições e insinuações como se fossem fatos –, e seus patrões, não têm lastro político para entender a dimensão da tragédia que está em curso. Não têm sagacidade nem pensam no interesse público. E não foram eleitos para nada, muito menos para derrubar alguém. Esses processos seguem um rito institucional, é bom que a mídia ponha isso na cabeça. Ou pare de encher a boca com a palavra democracia.
Se fizessem o exercício de imaginar o que seria um governo de Lula com um ministro da Fazenda e um presidente do Banco Central escolhidos entre os que combatem a responsabilidade fiscal, ou sugerem que um pouquinho de inflação é bom para estimular o crescimento, ou aplaudem a saída argentina como se fosse virtuosa, e não fruto da mais cabeluda necessidade, esses dirigentes da mídia talvez enxergassem melhor as coisas. Ou, por oposição, se vislumbrassem o que poderia render um governo de Lula com responsabilidade na condução da economia e sem a incompetência dos Cristovams, dos Tarsos, dos Olívios, das Beneditas.
Pode ser que Palocci caia, pode ser que Lula caia. Se isso acontecer, fica aqui a sugestão: Palocci para editor-chefe de algum grande órgão de comunicação. Em uma só coletiva de imprensa ele mostrou, com simplicidade, mais discernimento e competência para comunicar do que a mídia em cem dias de crise do "mensalão".