No Brasil, quem tem rabo preso deixou há muito tempo de temer os jornais do dia seguinte. Teme as revistas do fim da semana. Não é nem preciso lembrar o Pedro Collor na Veja e o motorista Eriberto França na IstoÉ cavando a sepultura de um presidente.
No ano passado, o Waldogate foi a Época que deu. Agora, o flagra nos Correios foi a Veja que mostrou. A Veja também gravou o ex-diretor do Instituto de Resseguros do Brasil, Lídio Duarte, dizendo que o presidente do PTB, Roberto Jefferson, fixara em 400 mil reais a cota mensal do IRB para o partido.
As relações do publicitário Marcos Valério com o tesoureiro do PT, Delúbio Soares, o secretário do partido, Sílvio Pereira, e o ministro José Dirceu, referidas por Jefferson à Folha de S.Paulo, foram comprovadas pela IstoÉ Dinheiro, graças à agenda da secretária Fernanda Karina.
Os 20,9 milhões de reais sacados na boca do caixa do Banco Rural pelo publicitário Marcos Valério apareceram pela primeira vez na IstoÉ. E a Veja expôs a participação do prestimoso Valério na obtenção, aval e pagamento da primeira prestação de um crédito de 2,4 milhões de reais do BMG para o PT, em fevereiro de 2003.
Os jornais têm gasto os proverbiais rios de tinta na cobertura da crise da corrupção – e praticamente nada do que os políticos digam sobre isso lhes é estranho. São páginas e páginas de aspas – muitas até da maior importância, como se verá.
Mais tempero e alguma arrumação
Afinal, nem todo jornalismo declaratório é descartável no acompanhamento de uma atividade cuja matéria-prima, como dizia o sábio doutor Ulysses Guimarães, é a saliva. Em 1945, uma entrevista do político José Américo ao Globo tirou o chão que restava debaixo da ditadura do Estado Novo.
Mas é decididamente comum a inversão de papéis que se consolidou na mídia impressa brasileira. Em tempos idos, o jornalismo investigativo era como que propriedade privada dos diários, enquanto as revistas da geração pós-Cruzeiro e Manchete se dedicavam a oferecer pouco além do que um resumo da semana.
O que os semanários faziam era dar ao leitor mais tempero – por exemplo, quantos cigarros com filtro fumava por hora o inveterado senador arenista Petrônio Portella, incumbido pelo general Golbery de arar o terreno da distensão política – e um pouco mais de arrumação dos fatos que ocuparam o noticiário do dia-a-dia. A Veja foi isso durante muito tempo, mesmo depois do fim da censura prévia que chegou a sofrer.
Em certa época, a propaganda da Time americana, a criadora do gênero, com a meta de desobrigar o público de ler jornal todo dia, dizia que a revista separava o que é notícia do que é apenas barulho (em inglês soa melhor: ‘What makes news from what just makes noise’).
Mas os jornais americanos nunca cederam às semanais a robusta tradição de ir atrás da notícia que faz barulho não porque seja irrelevante, mas porque é relevante demais – razão pela qual sempre havia quem quisesse escondê-la.
O massacre de Mi Lay, no Vietnam; os documentos do Pentágono; o celebérrimo Watergate; o caso Irã-Contras, as torturas contra suspeitos de terrorismo no Gulag americano que vai do Afeganistão a Guantánamo, tudo isso e muito mais, como dizem os publicitários, os americanos leram primeiro nos seus diários. Em matéria de furos que fazem rombos, os jornais continuam a dar de goleada nas revistas.
De segunda a sábado, o óbvio (ou quase)
No Brasil é diferente. Não que os jornais tenham abdicado da preocupação em desenterrar podres. (Ao contrário, às vezes até o fizeram na base de atirar primeiro e perguntar depois, o que tornou suspeitas também reportagens investigativas feitas com os cuidados certos.)
Mas as revistas mergulharam de corpo e alma nesse rico pesqueiro, deixando para trás a rotina cotidiana. Já os jornais, com as redações no osso – o que torna extremamente complicado entregar um par ou uma trinca de ases da reportagem a uma escavação que pode imobilizá-los durante semanas e afinal dar em nada – parecem ter optado, em regra, por fazer o óbvio, ou quase, de segunda a sábado e refletir sobre ele, no domingo.
Nesse primeiro domingo de julho, as manchetes dos três grandes (Folha de S.Paulo, O Globo e Estado de S.Paulo) eram a capa da Veja transplantada. Nem poderia ser diferente, dada a notícia arrasa-quarteirão que ela trazia.
Os seus leitores, ou pelo menos aqueles interessados no espetáculo de crescimento da corrupção denunciado por Jefferson, não podem ser criticados se pensaram por que raios não compravam a revista de vez, para beber direto da fonte.
Notícia ainda é a mercadoria primária de toda a mídia informativa. Notícia exclusiva, é a sua variedade aditivada. Notícia exclusiva de tirar o fôlego, então, é a modalidade premium.
O público brasileiro só teria a ganhar se, não só, mas principalmente em situações de crise política, a competição pela notícia de qualidade superior não se restringisse, como parece ter se tornado norma, aos semanários.
Uma grande conversa com Lula
Sejam quais forem as limitações da imprensa jornaleira, o leitor dela espera que também participe do garimpo dos escândalos. Quanto mais não seja porque tem mais espaço para servir uma revelação, como os saques em dinheiro vivo do Banco Rural ou o empréstimo do BMG ao PT, guarnecida por um não menos suculento contexto.
Isto posto, não se faça aos jornalões a injustiça de dizer que, nesse último domingo, se limitaram a papaguear, resignados, o golaço da Veja.
Em reportagens, artigos, colunas assinadas e entrevistas – que obviamente demandam do leitor mais tempo e cabeça do que para apenas tomar conhecimento dos detalhes de uma operação bancária –, os jornais fizeram em relação a Lula o equivalente ao que, em tempos passados, se dizia da sociologia: que nada mais era se não um vasto e interminável diálogo com Marx.
O dia, de fato, foi de uma grande conversa da imprensa com o presidente – talvez útil para ele, com certeza para o leitor. Do artigo de Fernando Henrique no Estado e no Globo, dizendo que seria ‘golpismo’ apedrejar desde já o seu sucessor, aos textos analíticos ‘As elites conspiram, mas a favor de Lula’, de Fernando Barros e Silva, e ‘Má notícia: Lula é menor do que a crise que o engolfa’, de Josias de Souza, ambos na Folha, foi como se os jornais falassem para o presidente, com serenidade ou indignação, tanto faz, olhando para a opinião pública.
A excelente entrevista de Ariosto Teixeira com o senador tucano Tasso Jereissati, no Estadão, é o retrato disso. Quando ele diz, e o jornal põe no título, ‘Lula precisa reconstruir sua biografia’ (com a linha-fina que pinça do entrevistado a observação de que o ‘presidente ainda não entendeu o tamanho do problema’, com quem o leitor pensa que Tasso está falando?
Aprofundado a crise – e o debate
Só não fica claro o que ele quis dizer com ‘eu nunca tive uma conversa reservada com o presidente Lula’. Porque, na véspera, o colunista Jorge Bastos Moreno escreveu no Globo: ‘FH não gostou nada de ver Aécio Neves ir beijar as mãos de Lula. Ah, e se ele soubesse que Tasso Jereissati e [o também senador tucano] Arthur Virgílio já foram, e levados pelo mesmo Palocci?’ Vai ver que Tasso que voltar a palácio desacompanhado.
Todos as peças dessa interlocução contêm críticas. Nem vestígio, ali, de jornalismo chapa-branca. Mas nenhuma tampouco incita ao quanto pior, melhor. Se a revelação da Veja aprofundou a crise – e disso não há quem duvide –, os jornais mais importantes aprofundaram o debate sobre as suas origens e desdobramentos. Quem leu fez bom proveito.
Só não deu para esquecer que reportagem política investigativa no Brasil é hoje quase um monopólio das semanais.
E, para não deixar barato, tampouco dá para esquecer que, mesmo depois do ensaio de matéria do Jornal do Brasil sobre o mensalão, em setembro do ano passado, se passaram nove meses até que o aumentativo voltasse a aparecer em jornais e semanários – não porque algum deles tivesse retomado a denúncia original e ido além, mas porque o deputado Jefferson, por motivos não muito misteriosos, resolveu soltar a voz na Folha de S.Paulo.
[Texto fechado às 17h27 de 4/7]