Felizmente, o país está livre de mais uma novela, embora outras tantas estejam a caminho. A cassação dos direitos políticos de José Dirceu só era enredo envolvente para certos setores da mídia. Será que alguém, com razoável capacidade analítica, suporia resultado diferente?
O que ocorreu na noite de quarta-feira (30/11) não passou de ritual de redundância que, para envolver o público, a mídia tentou dramatizar no limite das possibilidades. Para este articulista, o fim da ‘novela’ já estava claro desde 16/8, ocasião na qual, em artigo publicado neste Observatório (edição nº 342), afirmava:
‘As estratégias para o contorno da crise apontam como desfecho provável nada além da punição de dois nomes de maior repercussão, a exemplo dos deputados Roberto Jefferson e José Dirceu e, se tanto, mais umas duas dezenas de congressistas.’
O registro acima serve apenas para pontuar a relação entre eficácia analítica e velocidade da informação. Principalmente o jornalismo impresso, em nome de sua própria sobrevivência, deve realinhar seu foco, sob pena de perder gradativamente o lugar prestigioso. No mundo das novas mídias, somente o caminho do jornalismo propositivo (análise, argumentação e crítica) terá poder de concorrência. Em insistindo na fórmula da combinação informação/fato, o jornalismo impresso terá vida precária.
No quadro presente, o que caberia ao jornalismo propositivo seria acentuar a ameaça que ronda a política quanto à questão atinente à extinção da verticalização partidária e à cláusula de barreira. O Congresso está inclinado a eliminar as duas condições, em favor de interesses corporativos. Vetar a verticalização significará realimentar o processo de esvaziamento da identidade partidária e fortalecer o surgimento de partidos de aluguel.
A despeito da gravidade do que tais aspectos da política brasileira representam, não se percebe na cobertura jornalística interesse maior. Ao contrário, diariamente, revitalizam-se denúncias entre reais e infundadas, criando atmosfera de diluição quanto ao próprio vigor de tais matérias. Insisto na defesa de que o leitor médio brasileiro sente carência de idéias e saturação de informações.
Efeitos da cassação
É de causar espanto o espaço generoso que a mídia nacional destinou à figura do ex-deputado José Dirceu. Ao longo dos últimos meses, todos os espaços possíveis (jornais, revistas, programas de TV) foram ocupados, apesar de, em todos, se reproduzirem, como lição decorada, o mesmo discurso e a mesma argumentação, sem citarem-se as mesmas perguntas formuladas por diferentes jornalistas.
Em nenhum momento da vida brasileira, alguém foi capaz de invocar o perfil heróico com tamanha densidade e reiteração quanto o fez, em causa própria, o ex-ministro da Casa Civil. A mídia foi incapaz de sinalizar tom crítico a respeito. Foi um permanente desfile de narcisismo ilimitado. Sabedor de que seria condenado, o ex-deputado, em nome da preservação aos direitos individuais, usou quanto pôde da prerrogativa da auto-exibição sob completo respaldo do sistema midiático.
Ao imaginar-se que, com a consolidação do julgamento, o herói épico sairia de cena, eis que desdobramentos se apresentam. Após outras exposições públicas, com a devida cobertura dos meios de comunicação, a edição dominical da Folha de S.Paulo‘ (4/12), em matéria assinada por Fábio Zanini (‘Dirceu transfere ‘guerrilha’ para dentro do partido’), oferece ao leitor o seguinte trecho:
‘Dirceu vai propagar o evangelho da ‘repactuação das forças sociais’, jargão que tem usado com freqüência. Deve assinar na semana que vem com uma empresa de Brasília especializada em conferências. Segundo estimativas do setor, pode faturar até R$ 15 mil em cada uma.
Planeja ainda estrear um blog, estuda proposta de ser articulista de um jornal (não revela qual) e recebeu convite do ex-ministro da Previdência Raphael de Almeida Magalhães para integrar um grupo de estudos sobre desenvolvimento. Além do livro, a ser escrito por Fernando Morais, em que deverá expor ‘as limitações e os erros do governo’’.
A julgar pela rede de ofertas, a cassação se torna punição extremamente vantajosa. Não imagino quem se disponha a pagar R$ 5 mil, R$ 10 mil ou até R$ 15 mil por palestra, mas não resta a menor dúvida de que haverá quem pague. Ignoro também que profundos conhecimentos os pagantes absorverão a ponto de justificarem o investimento. Seja como for, a platéia para tudo (ou nada).
Ninguém, em sã consciência, é capaz de deslustrar os méritos do ex-deputado. O problema reside em saber-se até que ponto se justifica a qualificação. Para tanto, a matéria seleciona o depoimento de Chico Vigilante, presidente do PT do DF: ‘O Zé é um dos maiores estrategistas políticos desse país e uma voz que o PT sempre vai parar para ouvir’. Será que a história, com o devido distanciamento, referendará? Por fim, a matéria conclui com a seguinte narração:
‘Na semana que vem, Dirceu deve assinar contrato com a Ata, uma agência de promoção de palestras sediada em Brasília. Há alguns dias, já antevendo a cassação, fez um primeiro contato. ‘Ele seria um palestrante excepcional. É bom analista e estrategista. Pode ser ouvido tanto por trabalhadores como por banqueiros’ , diz o diretor da agência, Thales Leite. Dois convites já apareceram, da Argentina e dos EUA’.
Os trechos extraídos da matéria bem ilustram o que é jornalismo acrítico. Pior: jornalismo subserviente que mais se presta a publicidade e marketing do que servir ao leitor. A questão em pauta não é enaltecer ou deplorar a figura pública de José Dirceu. O ponto relevante está na associação eticamente condenável entre cassação (punição por falta de decoro parlamentar) e alta compensação decorrente da punição.
Será que a prática jornalística, em nome de informar, se dá conta do quanto propaga a inversão de valores? Será que ao responsável pela matéria não ocorre sequer a suspeita de estar difundindo o conceito de que o comportamento desviante é vantajoso? Pela total ausência de tom crítico na construção da notícia, cabe indagar se o autor da matéria atuou como jornalista ou na condição de assessor de imprensa. Fica a dúvida para cada leitor tirar sua conclusão.
Uma coisa, porém, é certa: a prática jornalística precisa urgentemente rever seus modos de ação antes de a percepção do leitor definir para si o estado de autoconvencimento a respeito dos descaminhos de uma atividade tão bela quanto decisiva para a solidificação da vivência democrática.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)