Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Para isto que serve a reserva de mercado?

Qual a missão de uma revista jornalística frente aos seus leitores? A verdade, a informação ou o simples proselitismo inútil? Uma matéria em uma revista de grande circulação deve proporcionar ao leitor, além da verdade, informações novas e relevantes para o mesmo. Este não espera que a matéria já esteja mofada e sem nenhuma novidade ao ser-lhe novamente apresentada. A verdade, é claro, relativa como aquela que pode mais se aproximar dos fatos.

A IstoÉ nos brindou no fim de setembro, no início da primavera, com uma matéria de capa já envelhecida tal a falta de novidades no assunto rebatido: ‘O poder dos médiuns – Como a ciência justifica as manifestações de contato com espíritos e por que algumas pessoas desenvolvem o dom’ (ver aqui). Escrito assim mesmo, sem ponto de interrogação, por Suzane Frutuoso, com fotos-montagens de Murillo Constantino.

Primeiro, a ciência só pode explicar o que ocorre comprovadamente. O que até hoje, para desgosto da jornalista, nunca ocorreu. Alegar uma ocorrência é insuficiente para considerar prova ou para ser submetido à verificação de qualquer fenômeno a ser analisado cientificamente. Para a fé é suficiente, mas para um diagnóstico da ocorrência ela precisa acontecer além da simples alegação. Dá-se pelo que se revela, e não pela fé em quem diz que revela. Talvez daí que o IBGE tenha encontrado apenas 1,3% de adeptos passados 150 anos e seja o gosto de novelistas e artistas até hoje. É um fenômeno principalmente brasileiro.

Ondas eletromagnéticas

Após analisar a composição da glândula pineal, o alegado, na matéria, de ser cientista, o dr. Sérgio Felipe de Oliveira, detectou na sua estrutura cristais de apatita, mineral também encontrado na natureza sob a forma de pedras laminadas. Segundo suas pesquisas, esse cristal capta campos eletromagnéticos. ‘E o plano espiritual age por meio desses campos. A interferência divina sempre acontece obedecendo as leis da própria natureza’, esclarece o dr. Sérgio Felipe, que é diretor-presidente da Associação Médico-Espírita de São Paulo (Amesp) e conhece quando esta interferência ocorre, decerto. Não consegui achar o seu nome entre a base de dados dos currículos Lattes, que congrega todos os nomes dos pesquisadores brasileiros do CNPq. Mas é um prolífico conferencista espírita.

A hidroxiapatita, Ca10 (PO4)6(OH)2, é o constituinte mineral do osso natural, representando de 30 a 70% da massa dos ossos e dentes. A hidroxiapatita ocorre raramente na natureza, porém sua estrutura é similar a fluorapatita (com o OH ocupando os sítios do F).

Se ela possui alguma alteração magnética, é muito discreta, pois não se constroem antenas de ossos ou de apatitas para recepção de ondas eletromagnéticas de nenhum tipo ou para fabricação de produtos que apresentem magnetismo ou reajam ao mesmo efeito. A massa que circunda a glândula pineal (a apatita presente nos ossos do crânio e dos dentes) é tanta que as diminutas concreções (vestigiais na glândula pineal) seriam anuladas por ela.

Mediunidade e telepatia

Como a comunicação espiritual falha ao apontar o que está na outra sala, quantos dedos o pesquisador está expondo embaixo da mesa do médium, onde estão enterrados os corpos de desencarnados por sacrifícios, injustiças praticadas em fossas coletivas, calamidades públicas (só aparecem em sessões de terapias de vidas passadas onde a pessoa também não se lembra onde estava, onde está seu registro, seus documentos, onde nasceu), obrigam o pesquisador crente a buscar provas nas minúsculas concreções de minerais.

Assim como as alegações de que a comunicação espiritual ou a telepatia, nunca demonstradas e, portanto, não provadas de existirem, tenham alguma relação com fenômenos magnéticos de algum tipo. Se fosse crível esta correlação de concreções calcificadas pelos alegados médiuns, a conclusão mais lógica seria a de que ela estaria correlacionada à capacidade de fantasiar, a Fantasy Prone Personality, (Wilson, S. C. & Barber, T. X. (1983) e sair da realidade, do que ter capacidades que não são demonstradas antes. Tenha ou não tenha cálcio na pineal, ou outro local, primeiro deve ser provado o fenômeno mediúnico fora da fé. Micro e macro calcificações em tecidos moles, glândulas, músculos etc. são sinais de dano do tecido, pelo envelhecimento, trauma, degeneração, antes de significar evolução ou o uso magnético do mesmo. Assim como se formam nos plexos coróides, na foice cerebral.

Imagine construindo uma pequena antena para captar emissões de rádio para o celular e colocá-la encerrada em uma espessa caixa de metal? É assim que teriam que funcionar estes grânulos de cálcio que aumentam com o passar dos anos e a senilidade. Por que a idéia de que a mediunidade e a telepatia teriam algo a ver com o magnetismo, mesmo que todas as experiências demonstrem a sua inexistência fora da fé?

Olhos não emitem nada

Porque foi a história da criação do fenômeno espírita por Anton Mesmer (1734-1815), Samuel Hahnemann (1755-1842) e Hippolyte-Léon Denizard Rivail – (Allan Kardec) (1804-1869), crentes do sobrenatural nestes efeitos no início incipiente dos estudos da eletricidade e dos efeitos magnéticos. Na época, a sugestão hipnótica era acreditada por eles (e seus seguidores) como produzida por um efeito magnético. Por isto que o termo mesmerismo é utilizado pelos esotéricos tanto para significar efeitos magnéticos como hipnóticos.

Segundo o físico-espiritualista, dr. Valdir Aguilera, os pensamentos são irradiações ondulatórias produzidas por vibrações do espírito, encarnado ou desencarnado; ele não se propaga por ondas eletromagnéticas, e sim, através de ondas vibratórias. E o ambiente líquido onde a pineal está localizada, de certa forma, facilitaria a captação dessas ondas vibratórias, na sua visão. Espíritos estariam na dependência de atmosfera para pensarem. Claro que a ciência é pequena frente à nossa enorme capacidade de divagação.

Assim como nos esclarece o dr. Iso Jorge Teixeira, ‘não tem nenhuma correlação com a glândula pineal, pois tal tese relacionando pineal e mediunidade não tem nenhuma sustentação doutrinária espírita, nem científico-natural’. No site de Neuroimagem, da Unicamp: ‘Concreções calcáreas ou corpora arenacea, acervuli cerebri ou areia cerebral aumentam em número com a idade’ – assim, não há a menor dúvida de que não há correlação entre concreções calcárias e a mediunidade, pois esta não aumenta com a idade e aquelas, as calcificações, sim… Se a apatita tivesse alguma correlação com a mediunidade, ensina o dr. Iso, esta aumentaria com a idade, o que não é verdadeiro doutrinariamente, nem na prática…

‘(…) Sabe-se, a partir da anatomia comparada, que a glândula pineal é um remanescente vestigial do que era um terceiro olho na parte de trás da cabeça, em animais inferiores. (…)’ (GUYTON & HALL. Tratado de Fisiologia médica. Edit. Guanabara Koogan S.A., Rio de Janeiro, 1997, p. 922). Lembrando, olhos servem para captar luz, não emitem nada. Olhos, que são mais desenvolvidos que a pineal, não percebem campos magnéticos. Lagartos não teriam interesse em ‘ver ou se comunicar com os planos espirituais’, e sim, desenvolver mecanismos de caça e defesa contra outros predadores.

Violação das leis da natureza

Continua o dr. Iso: ‘Podemos identificar a estrutura anatômica e funcional da pineal e nada sério nos autoriza a fazer correlações dela com o perispírito e, muito menos, com o Espírito.’ Corroborando o que vimos dizendo, vejamos a visão do confrade, dr. Prof. Nubor Orlando Facure, da Unicamp:

‘Podemos identificar as células da pineal e sua microestrutura, registrarmos suas trocas metabólicas, identificamos as secreções dos humores e a transmissão dos influxos nervosos. Entretanto, no domínio da atividade espiritual, os possíveis componentes e como atuam, são ainda indetectáveis pelos nossos instrumentos. Extrapolar nosso conhecimento `daqui para lá´ ainda permanece no campo da metafísica.

Não seria prudente imaginarmos que `por aqui´ poderemos um dia conhecer toda extensão desse fenômeno que chamamos de `psicofísico de natureza espiritual´. Pressupondo, de antemão, que `do lado de lá´ a dinâmica espiritual do fenômeno é muito mais ampla e significativa do que nossa anatomia pode registrar.’ (‘Fenômenos Psico-Físicos de Natureza Espiritual‘).

Portanto, não encontramos credibilidade desta ‘descoberta’ nem mesmo entre os médicos espíritas para ser apresentada ao leitor. Se houvesse a necessidade de concreções calcificadas para comunicação espiritual, espíritos não se comunicariam entre si, pois eles carecem de concreções de qualquer tipo. Só uma reportagem muito mal feita e mal elaborada apresentada ao assinante. Parece que o editor não se importa.

David Hume (1711-1776) nos ensina a respeito do milagre – Ensaio Sobre os Milagres. Uma forma de apoiar a religião é por apelo a milagres, ele diz. Mas Hume argumentou que, no mínimo, os milagres não poderiam conferir muito apoio à religião. Há vários argumentos sugeridos pelo ensaio de Hume, todos eles à volta do seu conceito de milagre: nomeadamente a violação por Deus das leis da natureza.

Velhacaria e idiotice humanas

Um argumento é o de que é impossível violar as leis da natureza (apesar de o povo viver chamando a tudo milagre). Outro argumento afirma que apenas o testemunho humano nunca poderia ser suficientemente fiável para contra-ordenar a evidência que temos das leis da natureza. Outro argumento, menos irredutível, mas mais defensável, é que devido à forte evidência que temos das leis da natureza, qualquer pretensão de milagre está sobre pressão desde o início e precisa de provas fortes para derrotar as nossas expectativas iniciais: ‘alegações extraordinárias necessitam de provas extraordinárias’.

Testemunho é a prostituta das provas, na visão forense. Em ciência ela nem é considerada. Existem infinitos razões para as mesmas serem falsas percepções. Este ponto tem sido aplicado, sobretudo, na questão da ressurreição de Jesus, onde Hume sem dúvida perguntaria ‘o que é que é mais provável? Que um homem se erga dos mortos ou que este testemunho esteja incorreto de uma forma ou de outra?’ Opinião compartilhada por dois terços da humanidade não cristã.

Em compensação, a crença popular nos milagres – perfeitamente explicável pelas leis que governam a imaginação crédula dos homens – é muito natural.

‘A velhacaria e a idiotice humanas são fenômenos tão correntes que eu antes acreditaria que os acontecimentos mais extraordinários nascem do seu concurso, ao invés de admitir uma inverossímil violação das leis da natureza’ (O Empirismo – David Hume).

Aspectos da vida em Júpiter

No caso das alegadas comunicações com espíritos, psicografia de livros, pinturas, declaradas visões e explicações de doenças por ‘desequilíbrios’ adquiridos em vidas passadas não são provas de nada que não pode ser completamente inventada e alegada graciosamente. Como por sinal, gnomos, encontros com o diabo, pé grande, abominável homens das neves, paraísos com 72 virgens, limbo, inferno, fantasmas, saci pererê, contatos imediatos, abduções, relações sexuais com extraterrestres, ou o que se quiser inventar na existência da infinita quantidade delas. Thomaz Green Morton, o homem do Rá, entortava colheres, torcia moedas, exalava perfume, ressuscitava peixes e eclodia ovos frescos em pintos: tudo com provas testemunhais de gente séria. Todos frutos de imaginações férteis sem evidências naturais para corroborar. Sem demonstrações evidentes e reproduzíveis, pertencem apenas ao mundo do imaginário de cada um, às vezes transmitidos para o coletivo de crentes. Acreditados por cada grupo de apregoadores livremente. Mas não pertencem ao mundo da ciência.

O analista fiscal Wagner Fiengo, 37 anos, relata na matéria que uma pancreatite surgiu sem que os médicos diagnosticassem os motivos. Há quatro anos, seu ‘guia espiritual’ explicou que as doenças eram ajustes a erros que Fiengo havia cometido numa vida passada. Tipo assim, punição divina que o punido não sabe que está sendo punido e muito menos a causa. Seria esta a razão que animais também sofrem de pancreatite? Que sina dos que sofrem de doenças em punição e jamais saberão por quê. Chico Xavier (1910-2002) escreveu que sua mãe morava em Marte, Ercílio Maes (1913-1993) descreve as cidades e a vida no mesmo planeta, Allan Kardec conversava com o espírito de Hahnemann e com o célebre oleiro Bernard Palissy (1510-1589) que todos sabiam, alegava Kardec, morava em Júpiter. Por sinal, foi a alegada comunicação de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e Bernard Palissy, que se alegava terem reencarnado (nascido de novo) em Júpiter. Vários desenhos do aspecto da vida em Júpiter foram transmitidos por esses dois espíritos, servindo de médium desenhista o famoso teatrólogo Victorien Sardou (1831-1908), (novamente o gosto dos artistas pela fantasia) que, por sinal, ‘nada sabia da arte de desenhar no seu estado normal’, não tinha nenhuma habilidade para isso, afirma os espíritas.

Religiões, segundo o IBGE

Mas nenhum templo, pirâmide, povo extinto perdido na Terra os espíritos desencarnados revelaram até hoje. Não seria legal que Dos Pilas, Macchu Picchu ou Tenochitlán tivessem sido desenhados por eles antes de serem descobertos? (Será que ocorreu alguma novidade para merecer uma matéria de capa da IstoÉ das mesmas alegações?) Edgar Cayce (1877-1945) descrevia a Atlântida (assim como Chico Xavier e Hercílio Maes discorriam sobre seu cotidiano) mas, evidente, nunca mostraram onde era ou alguma prova. E Luiz Antônio Gasparetto, filho da sra. Zíbia Gasparetto na matéria, em viagem a Macchu Picchu recebeu a informação de um espírito no local da existência de uma enorme biblioteca (de um povo que não conhecia a escrita) mas o espírito, obviamente, não localizou onde a mesma se localizava estando os dois conversando no local alegado. Minha mãe recebia o seu guia, que chamava de Eig, que desenhava com um turbante e rosto inexpressivo. Alegar coisas não tem nada de extraordinário neste mundo. Todos contam com a credulidade ilimitada das pessoas a tais afirmações gratuitas e sem provas. Até a jornalista e a revista IstoÉ que, por sinal, não é nem original neste campo da exploração humana.

Veja que O Livro dos Espíritos, 1857, O Livro dos Médiuns, 1861 e O Evangelho Segundo Espiritismo, 1864, foi escrito pela mesma pessoa que alegava e descrevia a vida nos diversos planetas solares, a causa espiritual dos terremotos e ventanias, e a vitória da homeopatia frente a ciência (outro fenômeno apenas brasileiro).

No censo IBGE-2000, 3,5% (6 milhões de pessoas), denominada com a categoria ‘outros’. Quem são os outros? Os dados nos mostram que há uma diversidade religiosa que pode ser distribuída entre os espíritas, que são 2.337.432 (1,38%); as religiões afro-brasileiras somando 571.329 adeptos, dos quais 140 mil são umbandistas; os budistas congregam 245.870 (0,15%) seguidores; os adeptos de Seicho-No-Iê, Perfect Liberty, Sinto, Bahai, Messiânica chegam a 181.579 (0,11%); os esotéricos identificados são 67.288 (0,04%); os hinduístas, 2.979 (0,001%); a religião judaica registra 101.062 fiéis (0,06%); os muçulmanos são 18.592 (0,01%) e as religiões de tradição indígena, identificadas pelo IBGE como a União Vegetal, o Santo Daime, a Barquinha somam um total de 10 mil seguidores (0,01%). Os Sem Religião somam 7,3% no Brasil. Apenas para 1,38% da população a revista escreveu que acreditam que médiuns possuem algum poder.

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Médico, Porto Alegre, RS