Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Para não acabar de vez com os jornais (e a democracia)

  1. A revista do Público, onde esta coluna sai aos domingos, acaba hoje. A administração antecipa um prejuízo na ordem de três milhões de euros em 2015, segundo notícias na imprensa. O número será confirmado após o fecho de contas e não consta do comunicado aos trabalhadores, a 10 de Dezembro, anunciando “redução de custos”. Com variações, a revista existe desde a fundação do jornal, há 25 anos (a partir da semana que vem, reportagens, entrevistas e perfis mais extensos serão integrados no jornal de domingo, bem como esta coluna).

Além da extinção da revista, a administração comunicou aos trabalhadores um “plano de rescisões voluntárias” em condições “mais favoráveis do que as previstas na lei”. Os “interessados podem manifestar-se” até 6 de Janeiro, a administração “avaliará”, reservando-se o direito de “declinar” algumas, e quer concluir o processo no dia 15. O comunicado, divulgado pela Agência Lusa, não indica quanto se pretende poupar, mas diz que pode haver “a necessidade de recorrer a outras medidas” caso “a execução do plano” proposto “não atinja dimensão adequada às necessidades”. Ou seja, não exclui um despedimento colectivo, concluem notícias na imprensa.

A última vez que isso aconteceu foi em 2012, quando, perante um prejuízo de 3,5 milhões de euros, devido à queda de publicidade e vendas, a administração despediu 48 trabalhadores, incluindo fundadores do jornal. A redacção foi, de longe, o sector mais afectado: 36. Além dos despedidos, alguns jornalistas optaram por deixar os quadros, ficando a colaborar (é o meu caso).

A mudança histórica é deixar de pensar o jornalismo escrito como um negócio e encará-lo como um bem comum, envolvendo todos: quem tem dinheiro, para que isso possa existir, e quem não tem, para que possa ser melhor.

Um jornalismo que contrarie os abusos de poder

O que aconteceu desde então, diz o comunicado dos administradores, foi que esses cortes não bastaram face à continuação da “quebra de vendas em banca” e na publicidade em papel: o jornal ganhou 10% de audiência devido ao online, onde triplicou de assinantes, mas a subida na publicidade digital não compensa a descida na publicidade em papel.

Propriedade da Sonae, uma das maiores empresas portuguesas, o Público deu quase sempre prejuízo. Belmiro de Azevedo (que em 2015 passou a presidência da administração da Sonae ao filho, Paulo Azevedo) resumiu em entrevista a este jornal: “Não há muita gente a aguentar um ‘perdócio’ de 25 anos.” É um facto, mais do que isso, um património na democracia portuguesa. Quando o Público começou, a democracia tinha apenas 16 anos, e sem os milhares de pessoas que o foram fazendo o país seria outro, e o mundo que cá chegou também. Foi preciso dinheiro e visão para erguer esse património, como será preciso dinheiro e visão para continuar.

O meu ponto nesta crónica tem a ver com a visão: o que pode ser um projecto de jornalismo como este 25 anos depois.

A tendência internacional (dados adiante) é para que os diários tenham dificuldade em sustentar-se com vendas e publicidade. O ideal, creio, será encarar isso já, pensando como salvaguardar o jornalismo escrito enquanto bem comum. Projectos como este jornal podem, devem, actualizar a publicidade para o digital, mas por mais cortes que façam, sacrificando trabalhadores, diversidade e profundidade, têm pouca hipótese de sobreviver com vendas e publicidade. A mudança histórica, então, seria deixarem de ser pensados como um negócio – propício ao prejuízo, a cada ano decepcionante para accionistas e desestabilizador para trabalhadores que vão perdendo condições – e serem tomados como responsabilidade social. Colectivos decisivos para a democracia, para uma sociedade mais complexa, livre e justa, envolvendo toda a gente que se sentir implicada neles: quem tem dinheiro, para que possam existir, e quem não tem, para que possam ser melhores. O que está em causa é a própria existência de um jornalismo que contrarie abusos de poder e amplie o mundo, não menos.

Mas antes de desenvolver essa ideia, é preciso completar um pouco o quadro dos jornais no fim de 2015.

“Violência, coacção e abuso”

  1. Dias antes de os novos cortes no Público serem noticiados, soube-se que o diário e o semanário Sol vão fechar, tal como existiam, e cerca de 120 trabalhadores, na maioria jornalistas, serão despedidos. A empresa detentora dos dois jornais, a Newshold, do angolano Álvaro Sobrinho, ex-presidente do BES Angola, alega prejuízos de 4,4 milhões de euros no Sol e de 3,8 no i, e decidiu extinguir-se.

O anúncio foi feito aos trabalhadores pelo CEO Mário Ramires, num plenário a 30 de Novembro. Ramires informou que ia liderar um novo projecto com um terço das pessoas. As 66 sobreviventes fariam uma edição diária e outra ao sábado, com salários inferiores e abdicando de antiguidade, caso no futuro fossem despedidas. Estas condições não só eram obrigatórias como o CEO pediu a quem aceitasse para assinar ali um documento prescindindo da indemnização. Entretanto, estava a gravar em áudio o plenário, e a 2 de Dezembro publicou na íntegra o registo, de quase duas horas, nos sites dos jornais.

“Um desses momentos que ficam na história recente do jornalismo português pelas piores razões”, reagiu em comunicado o Sindicato de Jornalistas (SJ), considerando que a decisão de Mário Ramires “ultrapassa todos os limites da decência, abre grave precedente e merece uma análise específica”, pelo que o SJ apresentou “queixa à Entidade Reguladora para a Comunicação Social pedindo uma avaliação urgente” do caso. “Como é possível os responsáveis editoriais e da empresa acharem que têm direito de publicar um momento grave e íntimo destes para a vida de dezenas e dezenas de trabalhadores? E, o que é ainda mais inacreditável, sem autorização expressa dos trabalhadores, como apurou de forma cabal o SJ. Será que não se dão conta da violência, da coacção, do abuso?”

As diferentes notícias sobre o processo Sol/i referem que Mário Ramires se manteve incontactável, tal como Álvaro Sobrinho (alvo de diversas investigações judiciais/financeiras nos últimos anos).

O essencial será não apenas manter o que ainda sobrevive, como devolver aos leitores o que foi sacrificado: a tradição de crítica cultural em várias áreas; de grande reportagem e cobertura internacional; de longas investigações.

É possível rentabilizar a publicidade digital

  1. A 16 de Dezembro veio a público que o Diário Económico enfrenta uma penhora do Estado. Além das dívidas fiscais, o jornal devia a fornecedores, tinha salários em atraso e um passivo de 30 milhões. O director Raul Vaz informou a redacção nesse dia que a situação se tornara “muito complicada, para não dizer dramática” e falou ao Expresso na necessidade rápida de “uma solução que permita manter a marca”, sempre implicando cortes, admitiu ao Público. O Diário Económico é propriedade da Ongoing, ex-accionista da Portugal Telecom com participações noutros media. O Brasil econômico também é propriedade da mesma empresa e foi à falência. O empresário angolano Domingos Vunge mostrou-se interessado em comprar o jornal e o canal de TV que lhe está associado, num total de 160 postos de trabalho, cortando o “défice de tesouraria”. Vunge esteve ligado à venda do Sol a Álvaro Sobrinho.
  2. O que resumi acima são apenas notícias dos últimos 15 dias no momento em que escrevo. Outras redacções já tinham sofrido cortes, mundo fora há paralelos, o debate é vasto. No caldeirão dos media cabe muito, incluindo paparazzi, arrivistas e jogadores com fins não-declarados, que apostam a vida de redacções inteiras. O meu foco são os meios mais em risco, jornais ou revistas, onde o jornalismo pode ficar à mercê da degradação.
  3. Dois textos, com dez anos de intervalo, no site da Nieman (a fundação de Harvard para “promover e elevar os níveis do jornalismo”) dão uma ideia de como o foco do debate evoluiu de 2005 para 2015.

O texto de 2005 mantém-se actual em vários aspectos. Fala do problema de cada vez menos gente prestar atenção aos jornais. Descreve como “o modelo de negócios da imprensa está a implodir enquanto os leitores jovens se voltam para tabloides gratuitos e media electrónicos”. Diz que se tornou moda nos media “a autoflagelação, celebrando a emergência dos ‘cidadãos-jornalistas’, e aplaudindo a morte dos dinossauros”. Contrapõe que “num país polarizado, enfrentando desafios difíceis, o público precisa de recursos, experiência e acima de tudo profissionalismo para informação vital”. Dá um exemplo contundente: num estudo da Fundação Knight, mais de um terço dos estudantes americanos acha que a Primeira Emenda da Constituição dá “demasiada protecção à liberdade de imprensa”, e a maior parte não entende o que é liberdade de expressão”. Cita o provedor do leitor doWashington Post, que fala numa escalada contra os jornais (“mais e mais emailstêm um tom desagradável, ameaçador, ideológico”) e remata com o papel central dos jornais para uma cidadania informada (“nenhum outro media vos dará o conteúdo extraordinário do Post, do New York Times, do Los Angeles Times, doWall Street Journal e outros jornais de qualidade”).

O texto de 2015 tem por base o relatório anual “State of the News Media”, da Pew Foundation. Centra-se no domínio dos telemóveis como suporte de notícias: neste momento, 39 dos 50 sites de notícias mais populares dos Estados Unidos são mais lidos em telemóvel do que num computador. A publicidade para telemóvel passou de quase zero em 2010 para mais de um terço de todo o digital. O estudo confirma que a publicidade no papel continua a cair e que a receita da digital aumentou um pouco, mas “está longe de ser suficiente”. Para onde vai então o bolo da publicidade digital? Facebook, Google, Yahoo, AOL e Twitter ficam com metade, o Facebook sozinho com um quarto (e um terço da publicidade para telemóvel). Questões aparentemente a anos-luz das de 2005, mas que confluem mais do que se sucedem. Ou seja, os jornais têm novos problemas e boa parte dos anteriores mantêm-se.

Quanto à publicidade, adenda de um estudo de 2012, em que a Pew conseguiu dados que os jornais normalmente não dão garantindo anonimato: um grande jornal que decidira apostar no digital aumentara 50% nessa publicidade “desenvolvendo uma amplitude maior de anúncios do que a generalidade dos jornais”.

Portanto, sim, é possível, com imaginação, rentabilizar a publicidade digital. Não, os jornais não viverão disso.

Uma redação “não-lucrativa e independente”

  1. Mas creio que a publicidade ainda podia ter um papel numa nova lógica de jornalismo enquanto bem público. Grandes empresas portuguesas gastam dinheiro e tempo com programas, projectos, fundações relacionadas com “responsabilidade social”. Se, como anunciantes, valorizarem um jornal de qualidade, o ângulo do lucro – quanto me compensa anunciar aqui – pode mudar para o ângulo da responsabilidade social – este jornal é importante para a democracia. Talvez seja possível fazer isto estabelecendo parcerias com vários potenciais anunciantes. Não estaríamos ainda no domínio da filantropia, porque eles continuariam a lucrar, embora certamente menos do que nos “media” cujo objectivo é vender. Mas teriam outra espécie de ganho.

Não, os jornais também não viverão disso, ainda assim talvez ajude.

  1. No domínio da filantropia está a americana ProPublica, de que me falou Adelino Gomes, defensor há anos de um outro modelo para jornais como o Público, nomeadamente uma fundação. O que conversámos antes desta crónica foi, como sempre, inspirador.

Fundada em 2007 como um projecto online para peças jornalísticas de longa pesquisa, duração e investimento, a ProPublica faz aquilo que jornais e revistas, no actual modelo, dificilmente conseguem. É seguida por mais de meio milhão de leitores mensais, já ganhou dois prémios Pulitzer, tem um orçamento de 12 milhões anuais, uma equipa de 40 jornalistas e 26 parcerias com sites de notícias e grandes jornais, como o New York Times ou o Guardian, seus aliados, por exemplo, na divulgação dos documentos de Snowden. Tudo isto, vivendo de donativos. Três mil doadores, entre fundações, filantropos e leitores em geral. Todos os conteúdos são abertos, há mesmo um link que diz: “Roubem as nossas histórias” (mediante um código de conduta, por exemplo, não as alterar ou vender).

Difícil saber como chamar à ProPublica: site, plataforma, jornal ou revista online? Eles falam em newsroom, ou seja, redacção. Portanto, uma redacção, declarando-se à partida como “não-lucrativa e independente”. No ano passado, o presidente, Richard Tofel, deu uma entrevista ao Guardian cujo título era “A nossa missão é acabar com abusos de poder”. Começa por dizer que no momento da entrevista está a recuperar de um pesadelo: sonhou que ainda trabalhava no Dow Jones. Porque é daí que Tofel vem, da bolsa para o Wall Street Journal, de onde aliás não veio sozinho para a ProPublica. Ou seja, gente que trabalhou na finança, se cansou a ponto de ainda ter pesadelos e usou contactos e experiência para algo não-lucrativo, viabilizando isso com quem tem dinheiro. Tofel explica que houve um esforço para multiplicar os doadores. Quanto mais gente, mais livre de pressões. Sim, aconteceu alguns dizerem que não gostaram de determinada cobertura, e a ProPublica respondeu, temos pena, e eles foram-se embora. Sim, seria óptimo que anúncios e assinaturas pagassem este jornalismo, mas essa não é a realidade. O que é estratégico para os doadores? Nós levarmos isto a sério, diz ele.

Pedir a um precário ou freelancer que trabalhe de graça

  1. O grande repórter Ryszard Kapuscinski tem aquela frase: “Este ofício não é para cínicos.” É exactamente isso, e não há outra forma. Se os jornalistas não acreditarem no que escrevem, e que isso é importante, ninguém acreditará. Acreditar nisso é a maior forma de responsabilização. Mas para isso existir tem de ser valorizado por quem tem dinheiro e por quem lê.

Tudo o que Belmiro de Azevedo “perdeu” com o Público foi um contributo para a democracia. A mudança de prisma é olhar para isso enquanto ganho, impacto na história do país.

  1. Os leitores. Há uma mudança de paradigma aqui, também. Assinar jornais (ou revistas) que lemos, online ou em papel, é uma forma de os ajudar a sobreviver. Não encarar os sites como o pelourinho onde os malfeitores dos jornalistas e cronistas serão expostos, denunciados e executados, antes mesmo de o primeiro parágrafo ser lido, ou depois de o ler ao contrário, ou de ler o que não está lá, será uma forma de elevar os padrões. Ao assinarem o seu trabalho, jornalistas, cronistas, fotógrafos, ilustradores dão a cara por tudo o que fazem. Poucos trabalhos são tão escrutinados, e achincalhados impunemente. Se os leitores passarem a tratar o jornal como um bem seu, de que é preciso cuidar, não perdem em exigência, ganham-na como direito e dever.

Isto não deve ser confundido com a fantasia dos “cidadãos-jornalistas”. Há cidadãos e há jornalistas, os jornalistas serão cidadãos, mas o contrário não é verdadeiro. Os cidadãos só são jornalistas se o forem. Os leitores não devem substituir os jornalistas, que para o bem de todos, e como acontece com bombeiros ou médicos, devem ser preparados para o que fazem e honrar um código de conduta. Para isso têm uma carteira profissional, sujeita a critérios. A carteira existe como garantia para a comunidade e para o leitor, o que se tende a perder no salve-se quem puder que se tornaram “os media”. Também aí uma nova visão do jornalismo escrito poderá resgatar princípios básicos.

E num modelo em que os jornais deixem de ser vistos como um negócio lucrativo, qualquer leitor poderá ser doador. A lógica dos crowdfundings é exactamente essa: com dez euros ajudarmos alguém a fazer um livro ou ir à Coreia do Norte, porque achamos importante. Pensem nisso à escala de uma redacção que, assim, escreverá sobre livros ou irá à Coreia do Norte.

  1. Claro que o ideal seriam três milhões de leitores darem um euro e fazia-se um jornal, mas isso não vai acontecer, porque não há três milhões de leitores para um jornal como o Público, nem trezentos mil, não estamos a falar de grandes audiências, se estivéssemos eu não estaria a escrever esta crónica. Também é claro que não são os jornalistas que têm de resolver os problemas económicos dos jornais, não são pagos para isso, nem fizeram MBA. Como é claro, ao fim de todos estes anos que não percebo nada de dinheiro, por exemplo, de ganhá-lo. Mas só até ao ponto em que isso põe em causa a existência do que faço, porque quero continuar a fazê-lo e que outros possam continuar a fazê-lo. Ou seja, não admitindo, por exemplo, a exploração que é pedir a um precário ou freelancer que trabalhe de graça, ou quase. Tudo isto para dizer que, sim, seria óptimo não ter de dedicar vários dias a uma crónica falando de dinheiro: prejuízos, vendas, publicidade, doadores. Mas para o jornalismo ser viabilizado como um bem comum há que implicar o dinheiro nessa responsabilidade.

A tradição que o Público representa

  1. O Público não tem passivo porque a Sonae foi absorvendo os prejuízos. Belmiro de Azevedo nunca disse publicamente quanto investiu no jornal, talvez dezenas de milhões. Na prática, um financiamento a fundo perdido, em termos de euros, mas com todo um valor simbólico. Será impossível quantificá-lo, é a soma das contribuições de milhares de pessoas, numa espécie de arquivo vivo dos últimos 25 anos do país e do mundo. E, justamente, esse valor deveria ser tomado como uma pré-história do que agora pode acontecer. Invertendo a lógica tradicional, em vez de ver os tais 25 anos de “perdócio” como extravagância, vê-los como mecenato. Tudo o que Belmiro “perdeu” com o Público foi um contributo para a democracia. A mudança de prisma é olhar para isso enquanto ganho, impacto na história do país. Belmiro de Azevedo e a Sonae podem, devem, ser os primeiros a valorizar o investimento no Público.

Então, volto à questão do dinheiro e da visão, que viabilizaram esse património. No ano passado, o grupo Sonae facturou no total 4974 milhões de euros, e este ano vai facturar mais ainda, apontam os números já disponíveis. Ou seja, os três milhões de prejuízo no Público vão representar menos de um milésimo no bolo anual bruto da Sonae. O dinheiro, portanto, existe. E Belmiro já tem uma fundação. A Sonae até criou este ano um prémio de arte.

Por que não, no Público, evoluir para um modelo misto, em parte financiado pelo que nele é mais valorizado pelos anunciantes, como o Ípsilon (e pelo mercado crescente do lazer, como a Fugas), e em parte suportado por mecenato, envolvendo outros parceiros? Claro que não se trata de uma empresa patrocinar um texto, mas de várias contribuírem para um fundo, de modo a garantir total independência (isso permitiria, aliás, acabar com a dependência dos convites para viagens, que os jornais aceitam porque não têm dinheiro para viajar de outra maneira). A família Soares dos Santos (Jerónimo Martins/Pingo Doce) fez a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), exemplo de como uma grande empresa pode mudar a visão da sua responsabilidade no país (incluindo ter criado uma colecção de livros de reportagem, além de uma revista anual). O inglês Guardian é o caso de um diário gerido no quadro de uma fundação.

Mas independentemente do modelo, ainda em papel ou só online, em Portugal, no Brasil ou onde o jornalismo esteja em risco, o essencial seria não apenas manter o que ainda sobrevive, como devolver aos leitores o que mais foi sendo sacrificado: espaço e meios para crítica cultural em todas as áreas; para grande reportagem e cobertura internacional; para investigações longas. Passar a ver tudo isso como uma área nobre, o contrário do acessório. Este jornal iniciou o Público+, projecto que permitiu algumas reportagens com mecenato. Mas o orçamento era reduzido, havia limites para áreas e géneros, e não tenho visto resultados recentes dessa ideia.

Em Portugal, em geral, há pouquíssimo espaço, tempo e dinheiro para reflectir um milésimo do que se faz, pensa e cria, aqui e no mundo. Além de todas as zonas de abuso sucessivamente apagadas, entregues às piores violências, porque ninguém está lá para contar. Claro que Portugal não tem gente nem dimensão para os 3 mil doadores da ProPublica, nem a tradição filantrópica americana na educação, ciência e cultura. Mas tem há décadas a Fundação Gulbenkian, agora a FFMS, há-de ser possível avançar por algum lado. As empresas sempre na lista das maiores têm dimensão para estes investimentos serem milésimos no seu bolo.

A tradição que o Público representa, do jornalismo que me fez querer ser jornalista, não apenas pode ser inovada, como recuperar o que perdeu. É esse património que me permite escrever esta crónica no pressuposto de que ela não será lida pela administração antes dos leitores, e enquanto assim for será bom para a democracia.

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Alexandra Lucas Coelho é jornalista