O ‘caso Paula Oliveira’ sumiu do noticiário depois que a denúncia da agressão da advogada brasileira por skinheads na Suíça se revelou uma fraude. Há quem não queira esquecê-lo, entretanto, e por isso é louvável que o Observatório da Imprensa na TV tenha dedicado uma edição (3/3) a esse tema. Não assisti ao programa, mas a síntese apresentada no dia 4 de março, neste espaço [ver ‘Pressa em publicar, pressa em condenar‘], é suficiente para estimular ou reiterar alguns comentários sobre os fundamentos da prática do jornalismo. E, naturalmente, sobre o comportamento de jornalistas que insistem em não reconhecer o erro.
Os jornalistas que agora recuam aferram-se basicamente a um mesmo argumento: a história era verossímil, havia evidências, não restava saída, era publicar ou não publicar – o contrário seria supor uma imprensa encolhida, intimidada, demitida de seu compromisso de estar sempre alerta e ágil diante do que se apresentava como uma flagrante e repugnante violência. Como em tantas outras vezes, apela-se ao recurso fácil de uma oposição tão radical quanto simplificadora: ou isto ou aquilo, tudo ou nada, falar ou calar.
É claro que se trata de um sofisma rasteiro, que não resiste à crítica mais elementar. Pois não é verdade que a opção fosse publicar ou não publicar. A questão era – e sempre foi, e sempre será – como publicar, quando não se tem certeza absoluta de uma informação.
É algo elementar para qualquer jornalista, mesmo para qualquer estudante de jornalismo: em casos assim, sobretudo quando há dificuldade de acesso aos dados que comprovem uma denúncia grave, é fundamental a remissão à fonte. Do contrário, compra-se uma história como verdadeira e corre-se o risco de fazer o jogo de quem informa. Ou seja, o jornalista descumpre sua função primordial de mediador entre os fatos e o público, anula seu distanciamento, abdica do senso crítico.
Os indícios da suspeição
No caso específico, as fotos que atestariam a violência dos skinheads contra a brasileira indicariam, por si, para quem tivesse um mínimo de capacidade de discernimento, exatamente o contrário do que se pretendia evidenciar: a simetria das lesões nas coxas da moça, as letras ‘S’ invertidas na barriga, a apresentação de ferimentos apenas na parte frontal do corpo, alcançável pela própria (suposta) vítima, eram elementos suficientes para despertar dúvidas.
Tive essas dúvidas desde o primeiro momento e, pelo incômodo que me causavam, manifestei-as por e-mail, no dia 13 de fevereiro, dois dias depois da denúncia, ao ombudsman da Folha de S.Paulo e ao redator-chefe deste Observatório. No mesmo dia, uma leitora do blog do Noblat, onde a notícia foi publicada ‘em primeira mão’, explicitava os mesmos questionamentos. Numa pesquisa posterior, vi que, já no dia 12, um leitor do blog de Luis Nassif expunha suspeita semelhante.
São pelo menos três casos comprováveis de pessoas que estranharam a informação alardeada como um escandaloso caso de xenofobia, cujos desdobramentos são conhecidos por todos.
Não se trata, portanto, como ironiza o responsável pela divulgação da denúncia, de arvorar-se em profeta do passado. Trata-se de cultivar um mínimo de senso crítico. No caso de jornalistas em plena atividade, trata-se simplesmente de ser profissional.
Curiosamente, mesmo professores de jornalismo com larga experiência nas redações, e que por isso mesmo não costumam ter qualquer contemplação com alunos ingênuos, diante de um caso desses ficam buscando justificativas como o ritmo alucinante de trabalho, o açodamento provocado pela concorrência ou a verossimilhança da história para tentar compreender ou pelo menos minimizar a importância do ocorrido.
Jornalismo feito nas nuvens
O texto que resume o debate na TV reproduz um argumento crucial de Alberto Dines: o problema do jornalismo não é a verossimilhança, mas a veracidade. Ou, como escreveu certa vez o professor Manuel Chaparro, o problema do jornalismo é asseverar. É isso que lhe garante o status de credibilidade e o torna essencial para a vida cotidiana dos cidadãos.
Ricardo Noblat asseverou, no título da matéria que detonou o caso: ‘Brasileira torturada na Suíça aborta gêmeos’ – e prosseguiu no mesmo tom ao longo do texto. Os demais jornalistas fizeram o mesmo, ao ‘repercutirem’ a denúncia como fato indiscutível. É grave, porque asseverar implica uma certeza, e não uma crença ou a expectativa de confirmação de uma hipótese.
Quando a história começava a desmoronar e se avolumavam as acusações sobre as responsabilidades da imprensa, Noblat publicou em seu blog um artigo na noite de 18 de fevereiro intitulado ‘Apuração jornalística, investigação policial’. Começava assim:
‘A todos que criticam a imprensa: lembro-lhes da necessidade de separar apuração jornalística de investigação policial.
‘Jornalista trabalha com os fatos de que dispõe naquele momento. Informação é mais ou menos como nuvem. Você olha e ela se parece com um coelho, você, então, descreve um coelho. Se mudar depois, e se parecer com outro bicho, aí é sua obrigação mudar também.’
O artigo foi atribuído a uma ‘leitora que se assina Joventina Evaristo da Silva’. Seria de se estranhar a atitude de um jornalista que acolhe colaboradores de identidade duvidosa, revelando agora o zelo que lhe faltou ao noticiar a denúncia da brasileira na Suíça. A não ser que se trate do velho e precário artifício que um leitor do blog percebeu, ao protestar: ‘Noblat, por favor, pare com o papelão. (…) Ficar inventando Joventinas só piora as coisas’.
Com todo o respeito às Joventinas de verdade, o raciocínio desenvolvido no texto é mesmo digno de um Zé das Couves. Pois não seria preciso muito esforço para concluir o essencial: em primeiro lugar, a óbvia contradição entre o que se pode entender por ‘apuração’ e uma atividade baseada na mera ‘descrição’ de aparências voláteis. Em segundo lugar, mas ainda mais importante, a própria ideia de que o jornalismo flutua ao sabor das aparências. Logo, e para não fugir à metáfora, corre o permanente risco de tomar a nuvem por Juno, com a gravidade exponencial de disseminar publicamente esse engano.
Mas, se fosse assim, para quê precisaríamos de jornalistas?
A obrigação de reconhecer o erro
Entre os muitos malabarismos para esquivar-se da questão principal está a tática de transferir responsabilidades. Assim, como tentou justificar um dos participantes do debate, a precipitação dos jornalistas decorreria de uma ansiedade, quase de uma imposição do público: ‘O afã do julgamento observado na imprensa reflete o afã da opinião pública em encontrar culpados’. É uma conhecida teoria, esta, que vê os jornalistas como reféns do público. Então lavamos as mãos e podemos dormir tranquilos. Até o próximo escândalo.
O ‘caso Paula Oliveira’ não pode ser esquecido por pelo menos dois motivos: porque poderia ter sido evitado e porque é um exemplo espantoso da resistência dos jornalistas em não reconhecer o erro. A única exceção foi o ombudsman da Folha de S.Paulo. Carlos Eduardo Lins da Silva, em sua coluna de 22 de fevereiro, poderia ter posado de ‘profeta do passado’, até por não estar envolvido diretamente na questão, mas preferiu declarar sua própria responsabilidade ao não fazer qualquer ressalva na crítica interna do jornal, no dia em que o caso estourou: ‘Eu reconheço meu erro. Acredito que este seja o primeiro e indispensável passo para quem quer seriamente corrigir-se e melhorar’.
Além da óbvia e banal explicação de que ninguém gosta de errar e muito menos de admitir que errou, seguramente há inúmeros motivos que levam os jornalistas, especificamente, a essa atitude resistente. Um deles, com certeza, decorre de uma interpretação equivocada de seu próprio papel social: a já referida obrigação de asseverar levaria a supor que a ocorrência do erro enfraqueceria um valor básico para o jornalismo, que é o da credibilidade. Daí a tendência a ocultá-lo ou, quando não é possível, minimizá-lo. Porém deveria ser exatamente o contrário: se, como toda atividade humana, o jornalismo está sujeito ao erro, reconhecê-lo só contribuiria para demonstrar ao público que, por isso mesmo, esses profissionais são dignos de confiança.
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Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)