Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Para que servem as picaretas

Os números divulgados pela ONU autorizam a Folha de S.Paulo a decretar, na edição de quarta-feira (20/1): o terremoto no Haiti, com 72 mil mortos até agora, já é a maior tragédia registrada nas Américas.


Ainda assim, há quem queira se beneficiar de tanta desgraça: segundo a coluna ‘Panorama Político’, do Globo, o deputado Raul Jungman, do PPS de Pernambuco, propôs o envio de uma comissão de parlamentares ao Haiti.


Não se registraram manifestações de júbilo entre os haitianos.


O presidente da Câmara, Michel Temer, vetou a idéia, lembrando que ‘lá estão precisando de gente que pegue na picareta’. O observador acrescentaria: o Haiti está precisando de outro tipo de picareta, não aquele tipo que prolifera no Congresso.


Enquanto do Haiti começam a chegar as primeiras informações alentadoras, como a notícia de que o comércio parece ressurgir dos escombros e os saques se reduzem a eventos mais esporádicos, a imprensa nacional volta à sua rotina: para os jornais brasileiros, se não houver manifestações radicais da natureza, só existem dois assuntos na pauta: política e futebol.


Jornalismo declaratório


Os jornais reproduzem os cálculos da ONU, que apontam a possibilidade de o total de mortos no Haiti chegar a 200 mil, o que significaria uma catástrofe sem precedentes neste lado do mundo. Mas, diante das cenas brutais que se repetem todos os dias, os próprios jornalistas já dão sinais de esgotamento com tanta desgraça.


Assim como as vítimas precisam em algum momento secar as lágrimas e cuidar da sobrevivência, a imprensa também parece necessitar de um pouco de ar que não seja contaminado pela poeira e pelo cheiro dos corpos em decomposição.


Desse modo, nos vemos de volta ao cenário nacional, onde tudo, ao que indicam as manchetes de quarta-feira (20), aponta para as eleições presidenciais deste ano.


Mas não pense o leitor que irá encontrar nos jornais informações úteis para começar a fazer suas escolhas: sai o jornalismo de catástrofe, entra em campo o jornalismo declaratório.


Tapando vazamentos


O noticiário sobre inaugurações não explica o que representam as obras, que benefícios podem eventualmente produzir, a quantas pessoas podem beneficiar, se é que beneficiam a alguém. Tudo que os jornais apresentam ao leitor é um bate-boca entre governistas e oposicionistas, como se o Brasil todo fosse empurrado para cima do palanque.


Ao mesmo tempo, a política de verdade segue sua rotina. O grupo do governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, tenta driblar uma decisão do Tribunal de Justiça e recolocar no comando da investigação sobre distribuição de propinas o presidente da Câmara Distrital, deputado Leonardo Prudente, aquele mesmo que foi filmado escondendo dinheiro nas meias.


Os parlamentares que representam o governador acusado tentaram apelar para a ordem constitucional, reclamando que o poder Judiciário estaria interferindo em outro poder, o Legislativo. Os jornais precisam explicar ao governador e seus aliados que se trata exatamente disso: intervenção.


Enquanto isso, no território vizinho do Congresso Nacional, que também foi cenário de recentes escândalos, o diretor-geral do Senado baixou portaria instituindo a ‘lei do silêncio’, para tentar impedir que funcionários passem informações sobre irregularidades para jornalistas.


Uma comissão de sindicância formada por seis policiais legislativos foi encarregada de vigiar os servidores e assegurar que iniciativas como os atos secretos de José Sarney continuem secretas.


Neste início de ano, segundo lembra a Folha de S.Paulo, já vazaram para a imprensa informações sobre pagamento superfaturado de rescisões trabalhistas e autorização para repasse de crédito de passagens aéreas de 2009 para 2010.


Por enquanto, apenas a Folha noticiou a tentativa de amordaçar os servidores e cortar as fontes de informação para a imprensa. Espera-se que os outros jornais façam o barulho suficiente para desestimular mais esta cortina de fumaça de uma instituição que não tem cultivado sua própria respeitabilidade.


Em ano eleitoral, desbloquear o fluxo de informações sobre o poder político é essencial para que o leitor possa fazer suas melhores escolhas.