O Grupo Estado fez tudo o que podia para salvar o Jornal da Tarde? O que deu errado na história do mais inventivo vespertino brasileiro desde o lançamento da Última Hora, em 1951?
A empresa editora do Estado de S.Paulo investiu em talentos, buscou os melhores jornalistas, pagava excelentes salários e oferecia um grau de liberdade único.
O Jornal da Tarde tinha fibra, surpreendia, era engraçado, dramático, empolgante, arrasador. Local, nacional e cosmopolita, erudito e popular, político e futebolístico, influente e esculachado. Requintado numa edição, espalhafatoso na seguinte, jornal-revista nos moldes do Herald Tribune que lhe serviu de paradigma inicial.
E, no entanto, durou apenas 46 anos.
O que deu errado e o que deixou de ser feito para salvá-lo?
Ruas vazias
Este obituário deveria ser longo, remoído, sofrido, de outro modo não se entenderá a extensão e a profundidade desta trágica ascensão e queda em menos de meio século.
Os principais ingredientes são visíveis e o primeiro deles é gritante: nem todas as empresas familiares têm a disciplina, a coesão e o espírito corporativo de um clã como os Ochs-Sulzberger, que controlam o poderoso The New York Times há 116 anos.
O príncipe primogênito não é necessariamente o melhor monarca. O sucessor do Dr. Julinho, Júlio de Mesquita Neto, era uma ótima pessoa, jornalista experiente, gentleman, determinado, mas seu irmão mais novo, Ruy Mesquita, era melhor como jornalista. Homem de redação.
Para acomodar a bipolaridade, a família achou mais fácil criar um novo jornal. Poderiam ter pensado num jornal semanal ou revista nacional (como fez a Editora Abril dois anos depois ao lançar Veja).
Eram homens de jornal, em suas veias latejava o pulso diário. Imaginaram que sairia mais barato lançar outro jornal numa praça que já dominavam (o salto da Folha de S.Pauloaconteceu em 1975). Sendo nominalmente um vespertino, poderia sair às segundas-feiras e aproveitar o material futebolístico dos domingos vedado ao matutino Estadão.
Então lançaram o Jornal da Tarde, um vespertino como o nome indica, numa época em que a vertiginosa motorização urbana começava a engarrafar nossas metrópoles e tornava impossível distribuir um jornal durante o dia. Não se preocuparam em conhecer a experiência da Última Hora, de Samuel Wainer (inclusive porque o jornal foi patrocinado pelo arqui-inimigo da família, o caudilho Getúlio Vargas).
Os Mesquita também ignoraram a sabedoria de Roberto Marinho, “vespertineiro”nato, que soube enfrentar a vibração popular das manchetes de Wainer rodando O Globocada vez mais cedo e distribuindo-o em todos os cantos do Rio de Janeiro enquanto as ruas estavam vazias.
[Quando em 1960 este observador tentou ressuscitar o Diário da Noite carioca, convertendo-o ao formato tabloide, tentou simultaneamente devolvê-lo à condição de vespertino. Proclamava-se como “o único diário carioca que não era feito na véspera”: começou rodando às 11 horas; um ano depois as rotativas eram acionadas no início da manhã.]
Nas metrópoles brasileiras, em 1966, um autêntico jornal da tarde já era uma anomalia, arcaísmo, embora o Le Monde, vespertino denso e inabalável, continuasse a ser a voz da França politizada e intelectualizada. Acontece que o Le Monde brasileiro – ou paulista – deveria ser o Estadão, patriarcal, definitivo. Pelo menos, assim o queriam os Mesquita.
Ao Jornal da Tarde restou a opção de ser brilhante e bravo. E o foi ao longo de 15 anos. As prioridades e apostas da empresa privilegiavam sempre o jornal-primogênito, ao caçula cabiam as sobras do banquete. A fase vespertina foi formalmente encerrada em 1988, muito antes já rodava de madrugada.
De luto
Quando o delírio digital obrigou os jornais brasileiros a se reinventar, o Grupo Estado contentou-se em adotar os paradigmas emitidos pela Associação Nacional de Jornais (ANJ) e resolveu transformar o JT num veículo insignificante, periférico, popularesco. Um jornal que nasceu sofisticado não poderia caber num modelito brega. O resultado não poderia ser diferente.
A única experiência que poderia salvar o JT jamais foi cogitada integralmente, aquela que, desde o nascimento, lhe foi negada: ser um jornal da tarde, efetivo, autêntico, vespertino stricto sensu, jornal do dia, antecipador dos telejornais da noite e dos matutinos do dia seguinte.
Em muitas cidades do mundo tentou-se a fórmula de vespertinos segmentados, dirigidos aos jovens e/ou determinadas zonas urbanas servidas por redes de transporte público. As experiências estão em curso, não se tem notícia de que o Grupo Estado a tenha tentado.
Junto com a última reforma gráfica do Globo, em homenagem ao seu passado a versão digital passou a ser vespertina, isto é: o fluxo contínuo foi substituído por uma periodização a partir da tarde. Por enquanto, a mudança é simbólica. Mas o jornalismo é, em si, um conjunto de símbolos, a começar pelo culto a Mercúrio, o deus dos intercâmbios. Não se tem notícia de que o Grupo Estado tenha feito alguma especulação em torno dessa alternativa.
No passado, o grito “Stop the presses!” – ou “Parem as máquinas!” – tinha uma entonação triunfal: a tiragem estava sendo interrompida para a atualização do jornal. Era o momento supremo, hora estelar, em matéria de palpitação noticiosa.
Hoje, param as máquinas em sinal de luto. Para chorar o fim daquele formato que melhor simbolizou o jornalismo – o jornal.
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