Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Passando o provão paulista a limpo

Na penúltima semana de junho, o governo paulista divulgou com festas resultados parciais da maior checagem já feita no país do desempenho dos alunos do ensino fundamental e médio. O Saresp (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) submeteu no ano passado 4,2 milhões de estudantes (89% do total matriculado nas 11 séries da rede pública) a provas de redação, leitura e interpretação de textos.

O que se anunciou foi de cair o queixo. Segundo os dados distribuídos à mídia, três em cada quatro crianças da primeira série do ensino fundamental já estão alfabetizadas e mais da metade da turma consegue escrever um texto coerente. Na segunda série, os alfabetizados chegam a 90%, e os aptos a fazer uma redação inteligível são 75%. A maioria dos estudantes dos dois ciclos acertou mais de 50% das questões. No nível médio, apenas 1% dos alunos não conseguiu acertar 20% das questões.

O governador Geraldo Alckmin exultou: ‘Foi quebrado o mito de que escola pública é ruim’.

‘Bom desempenho em escolas de SP surpreende’, mancheteou cautelosamente o Estadão, destacando no subtítulo que ‘resultado é contestado’. A contestação ficou por conta do presidente do sindicato dos professores, citado como tendo dito que ‘a realidade que vemos no dia-a-dia da sala de aula é outra’, e por um educador da PUC-SP que, segundo o texto, ‘questiona a dificuldade das questões’. O jornal não voltou mais ao assunto.

Já a Folha entrou atirando, com a manchete ‘Tucanos omitem dados negativos do ensino’. Negativo foi o uso do termo ‘tucanos’ (no caso, o governador e o secretário de Educação Gabriel Chalita). Assim como ‘petistas’, ‘pefelistas’ e congêneres, o qualificativo se aplica, basicamente em contextos políticos, a membros ou simpatizantes de partidos. Alckmin e Chalita são tucanos, mas na situação específica da matéria eram ‘autoridades’, ‘governo’, ‘Estado’ – e o certo seria usar qualquer dessas palavras para não contaminar politicamente o título.

Além do razoável

Erro maior foi o de centrar fogo na divulgação parcial do provão. Não que isso não merecesse chumbo. Afinal, como bem a Folha destacou, o governo não divulgou o ‘ranqueamento’ (por que não ‘a ordem dos resultados’?) por aluno, escola e região; os percentuais de distribuição das notas; os problemas mais freqüentes nas provas; os índices dos alunos da primeira série do fundamental que fizeram pré-escola e dos que não fizeram.

Além disso, o jornal citou a estranha alegação do secretário Chalita de que a divulgação completa não seria ‘edificante (sic) do ponto de vista educacional’.

A Folha também mostrou em um quadro que, de acordo com os números do MEC para a quarta e a oitava séries do fundamental, em 2001 e 2003, em ‘nenhum Estado’ os alunos alcançaram níveis satisfatórios em matéria de compreensão de textos.

Mas uma segunda matéria, ‘Para educadores, dados escondem realidade’, tornou a martelar o problema da divulgação limitada do provão paulista, ouvindo, entre outros, o presidente do sindicato estadual dos dirigentes de ensino, para quem isso impede a sociedade de participar das mudanças na política educacional (sem aspas no original) – o que é mais retórico do que outra coisa. E um bom número de linhas é ocupado por entrevistados que acham que o ‘Estado não deveria avaliar só o aspecto quantitativo’ – o que é outra história.

O conjunto há de ter dado ao leitor a sensação de que o governo paulista agiu como, em 1994, o ministro da Fazenda Rubens Ricupero, captado pelas parabólicas dizendo ‘o que é bom a gente exibe, o que é ruim a gente esconde’.

Decerto por isso mesmo, a Folha não deixou barato. Para começar, tomou a iniciativa de pedir ao Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), responsável por todos os provões nacionais, que tabulasse os dados do Sistema de Avaliação do Ensino Básico (Saeb) que se referem apenas à rede particular, para compará-los aos da rede pública.

E – no que interessa ao assunto – aproveitou a numeralha geral para escancarar as discrepâncias entre os resultados da mais recente versão do exame federal e os do Saresp, saudados com rojões por Alckmin e Chalita.

Na edição de 28 de junho, quatro dias depois da outra – sem esquecer de explicar como e o que precisamente cada exame avalia –, o jornal tinha mercadoria para amparar a matéria de Cláudia Collucci e Fábio Takahashi, ‘Reprovado no Saeb passa no Saresp’, ilustrada por um eloqüente gráfico de barras coloridas.

Assim foi possível saber que:

** Enquanto no Saresp 68% dos alunos da quarta série fundamental tiraram mais do que 5 na prova de redação, no Saeb, na mesma faixa, apenas 5% apresentaram desempenho ‘adequado’ em língua portuguesa. (Naturalmente, mais de 5 e adequado são duas formas de dizer a mesma coisa.)

** Enquanto no Saresp 70% dos alunos da oitava série fundamental tiraram mais do que 5 na prova de redação, no Saeb os ‘adequados’ somaram 8%.

** Enquanto no Saresp 78% dos alunos da terceira série do ensino médio tiraram mais do que 5 na prova de redação, no Saeb os ‘adequados’ somaram 2%.

É contraste além do razoável para ser explicado pelo que possa haver de diferente na metodologia usada em cada exame (ambos, aliás, de 2003). Os repórteres ouviram educadores (o Saresp, comentou um deles, ‘parece o mundo da fantasia’); a assessoria de imprensa da Secretaria de Educação (a comparação não é válida); e o diretor de educação básica do Inep (o desempenho em português dos alunos do ensino médio público paulista é ‘horrível’).

Possível? Provável?

Quem teve a paciência de ler este texto até aqui provavelmente já se deu conta de que o problemão com o carnaval armado pelo governo de São Paulo a propósito do Saresp não está na divulgação aparentemente ricuperiana de seus resultados – mas no fato de destoarem de modo tão radical da experiência cotidiana dos professores e do que o Saeb tem permitido verificar.

Ainda assim, ao comentar no editorial ‘Educação oculta’, também de 28/6, que ‘ou bem a rede estadual de educação é um oásis no deserto pedagógico brasileiro ou há algo de errado com o Saresp’, a Folha preferiu, ‘por ora’, contestar não os resultados do provão, ‘que foi apurado pela reputada Fundação Carlos Chagas’, mas, como o título já dava a entender, a sua divulgação parcial: ‘Por razões obscuras, o secretário Gabriel Chalita não quis disponibilizar (sic) os resultados globais do Saresp, que já foram tabulados’.

O próprio jornal se encarregaria de indicar que a in-dis-po-ni-bi-li-za-ção de todos os resultados do examão pode não ser o seu maior problema. Nesta segunda-feira (5/7), a repórter Cláudia Collucci informou que ‘os professores aplicaram as provas de redação e corrigiram esses testes nas mesmas escolas estaduais nas quais lecionam regularmente’.

Isso nunca aconteceu. Mais: o presidente da associação dos professores da rede estadual foi citado como tendo dito que vários colegas foram orientados pelos diretores das respectivas escolas a agir com ‘certa condescendência na correção das provas’.

Outro dirigente corroborou: ‘Costumamos falar erroneamente ‘minha escola, meu aluno’, como se fossem nossas propriedades. É a mesma coisa de fazer avaliação do seu filho. A gente é um pouco coruja e isso pode influenciar na avaliação’.

Fazendo o que se deve nessas horas, a repórter conversou com 10 professores que confirmaram ‘em off‘ a orientação da condescendência. E avisou no texto que as declarações estão gravadas.

A condescendência pode ter sido reforçada por algo mais: $.

Segundo a reportagem, em 2002 o governo do Estado decretou que as notas do Saresp fosse um dos itens que compõem o bônus anual pago aos professores (e aos gestores da escola desde 2001). A Secretaria de Educação diz que o Saresp não entrou na conta do prêmio em 2003.

A réplica da reportagem é demolidora. Nas aspas do presidente da associação do magistério: ‘Os professores não sabem ao certo o que compõe o valor do bônus. Pensam que a nota do Saresp continua valendo pontos’.

A denúncia da possível (provável?) maquiagem das notas é 10, mas ainda não é tudo que há para apurar no caso.

Resultados extravagantes

Na Idade Média, diz a fábula, vetustos pensadores invocavam Aristóteles e Tomás de Aquino para justificar as suas opiniões conflitantes sobre quantos dentes tem um cavalo. Foi quando um iletrado camponês – decerto o precursor do empirismo – teve a ousadia de sugerir aos doutos que abrissem a boca do rocinante e fizessem a contagem.

Não deveria a imprensa fazer o equivalente? Afinal, um educador, ouvido pelo Estado, levantou a hipótese de ter sido a prova do Saresp insuficientemente difícil para servir de termômetro confiável das aptidões do alunado paulista.

Sem motivos para desqualificar de antemão essa possibilidade, os diários prestariam um belo serviço público se pedissem para ver a prova objetiva (leitura e interpretação de textos) que os tais 4,2 milhões de estudantes tiveram de fazer (a um custo, para o Estado, de quase 10 milhões de reais) e que a Fundação Carlos Chagas corrigiu.

De posse disso, poderiam, como primeira providência, submetê-la a um júri de especialistas. (Não é de imaginar que a Secretaria de Educação se recuse a fornecer o material.)

A mídia deveria passar a limpo até o fim os extravagantes resultados, para os padrões nacionais, da ‘maior avaliação de rendimento escolar da história brasileira’, como proclamou o governo paulista ao divulgá-los.

Impossível exagerar a importância desse inquérito jornalístico.