Faz mais de 14 anos que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) aprovou uma reforma ortográfica da nossa língua. E a novidade, já velha, ainda não saiu do papel.
O motivo? Portugal e Cabo Verde ainda não a ratificaram. Dos oito países que integram a comunidade lusófona, os outros seis já a subscreveram. São eles: Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Timor Leste e São Tomé e Príncipe.
Para problemas indevidamente formulados, respostas insuficientes ou prorrogadas ad aeternum. Começa que unificação não haverá, nem se sabe se é possível ou necessária, já que, apesar de decorrido tanto tempo, a reforma não foi suficientemente estudada ou discutida. Como aceitar uma unificação que autoriza dupla grafia para duas mil palavras, dentre as dez mil supostamente mais utilizadas?
Nos termos da reforma, Portugal aceita aposentar as consoantes mudas. Consoantes mudas são aquelas que escrevemos, mas não as pronunciamos, como em Egipto e objecto, de acordo com os exemplos que Eduardo Martins pinçou em artigo imperdível no Estado de S.Paulo (3/1/05, pág. A12 – veja íntegra na rubrica Entre Aspas desta edição). Mas outras consoantes pronunciadas em Portugal e estranhas à língua que falamos no Brasil, serão mantidas, como em indemnizar e facto. O som aberto na sílaba tônica seguida de ‘m’ e ‘n’ será grafado por Portugal à moda antiga, em vigor: prémio, género, económico, António etc. O Brasil, porém, manterá prêmio, gênero, econômico, Antônio etc.
Brasil mudará o ministro da Fazenda?
Os colunistas de política e de economia serão afetados imediatamente. Afinal, o ministro da Fazenda será substituído? O novo ministro, cujo nome aparecerá na imprensa dos oito países, vai ser escrito Antonio, António ou Antônio? Mas, mesmo havendo unificação na escrita, na fala ela se tornará impossível. A pronúncia de seu sobrenome em rádios e televisões será ‘Paloci’ ou ‘Paloti’?
O ministro certamente tem outras prioridades. Chamando-se Antonio Pallocci, ele comandou na prefeitura de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, um processo que fez o município abrigar a maior feira de livros do interior do Brasil e deixou sementes que permitiram a seu sucessor dotar a maior relação de habitante por biblioteca num município brasileiro. Soube escolher os nomes, dentre os quais desponta Galeno Amorim, que hoje integra a equipe federal no programa Fome de Livro.
Os nomes não serão afetados imediatamente, mas no futuro, sim. Quando os pais escolherem nomes para seus filhos, devem pensar em descomplicar a vida dos rebentos. O signatário até hoje é obrigado a dar explicações de seu nome. Afinal, por que nós, os ‘deonísios’, não somos ‘dionísios’ à semelhança da maioria? Pois a verdade é que ainda não tomamos uma decisão sobre como escrever em português.
Vindo a escrita eletrônica, precisei amputar o acento de meu nome se quisesse ter endereço na internet, coisa que Luiz Egypto de Cerqueira, meu diligente editor neste Observatório, não precisou fazer. E agora ele sabe que desde o começo, toda semana, ao enviar-lhe o artigo habitual, fico com uma doce inveja de meu amigo que pode abreviar o nome no endereço eletrônico. Retirou a partícula que quis. Não foi obrigado, como eu, a retirar um acento que muda a pronúncia. E mudando a pronúncia, mudam os poderes do nome, mudam suas defesas? Afinal, precisei me transformar de ‘deonísio’ em ‘deonisio’. (Este alter ego é pronunciado ‘deonisío’).
Prosódias impostas
Enfim, ainda não tomamos uma decisão sobre como escrever em português. Não há consenso sobre a gramática, a constituição de nossa língua. Para os nomes próprios, o consenso é impossível, ainda que aquele oficial de cartório, cujo nome esqueci, lembrasse a quem ia registrar os filhos: ‘Que nome vamos pôr na lápide?’. Era insólita a pergunta, mas obrigava os pais a uma indispensável reflexão, tantas são as confusões que fazem com os filhos ainda na certidão de nascimento.
Pois, se com este nome nascemos para o mundo, dele partiremos sem perder a unidade do sujeito. Isto é, quando morre o autor do nome, morre tudo o que o acompanha, como aconteceu ao ano de 2004. Agora, porém, ano novo, vida nova. Menos os assuntos pendentes. E a reforma ortográfica é um deles.
O incrível é que o Brasil, com mais de 170 milhões de falantes de língua portuguesa, aceite a submissão de uma grafia que é estranha ao espírito de nossa língua. Há tempos não ‘baptizamos’ mais nossas crianças, nem ‘adoptamos’ prosódias impostas por alguns gramáticos.
A anistia de 1979 seria melhor se fosse escrita ‘amnistia’? Valerão mais ou menos as ‘joias’ que vão perder o acento na reforma? ‘Heróis’ continuarão com acento, mas seus atos ‘heroicos’, não.
Assunto ignorado
A unificação trabalha num horizonte, não utópico, que utopias servem de norte e são desejáveis, mas impossível e maltrabalhado. Como disse Evanildo Bechara, diretor da Editora Lucerna, que publica a gramática do pai homônimo, ‘a unificação facilita parcerias, mas não resolve o caso dos livros infantis’. E dá um exemplo muito apropriado: ‘As palavras têm significado diferente e as crianças daqui não entendem os textos de lá e vice-versa’. E conclui: ‘Aqui se fala ‘fiz um passeio legal’ e lá, ‘um passeio gira’’.
Se a reforma entrar em vigor, Portugal será o principal beneficiado, segundo Cláudio Rotmüller, presidente do Grupo Campus: ‘Enquanto somos um mercado de 170 milhões de pessoas, eles têm só 14 milhões’.
O jornal O Estado de S.Paulo, que completa 130 anos na terça-feira, 4 de janeiro de 2005, dedicou uma página inteira ao tema da reforma no domingo (2/1), com artigos de Eduardo Martins e reportagens de Beatriz Coelho Silva, do Rio, e Lisandra Paraguassú (olhem o acento no nome!), de Brasília.
Na segunda-feira (3/1, pág. A 2), o diretor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Navarra concluiu seu artigo, intitulado ‘A serviço dos cidadãos’, com estas sábias palavras, que soam como advertência: ‘Os jornais excelentes – como O Estado de S.Paulo, que amanhã celebra seu 130o aniversário – são difíceis de desbancar, porque sabem que para proteger seu território devem formar uma grande equipe profissional, fortalecer sua identidade, respeitar os padrões profissionais e impulsionar a inovação. E, acima de tudo, lembrar-se continuamente de que a principal razão de sua existência é servir a seus leitores’.
Por vezes, e é freqüente que nos ocorra tal reflexão, a imprensa brasileira parece esquecida desta verdade: que existe para os leitores, não para dar emprego a jornalistas ou abrigar articulistas. Entretanto, se cumprir sua missão, virão novos empregos e novos articulistas, produzidos por novos leitores.
Sobre a ferramenta de trabalho dos jornalistas, a língua portuguesa, atualmente em reforma ignorada por quase todos os jornais e revistas, poucas palavras! É uma pena. É um assunto pendente. A imprensa está nos devendo pautas sobre o tema.