Vinte e seis minutos. Esse é o tempo que a Rede Globo, emissora de maior audiência do país, dedicou para reportar o depoimento do General Eduardo Pazuello (ex-ministro da Saúde) na CPI da Covid no dia 19 de maio de 2021. Descontado o tempo da escalada e os intervalos comerciais, o jornal teve 52 minutos e 28 segundos neste dia. Na prática, o Jornal Nacional decidiu dedicar exatos 50% do horário nobre da TV para Pazuello.
Ao preparar este artigo, montei uma planilha com uma série de aspectos editoriais a serem observados na cobertura da Globo, Record, Band e SBT. Comecei pela Globo e anotei o tempo total de 26 minutos. Na sequência, analisei a Record em que o tempo para cobertura do fato foi de 5 minutos e 40 segundos. Band fechou a reportagem em 5 minutos e o SBT em 5 minutos e 50 segundos. A minha análise voltada para a narrativa das reportagens ficou em segundo plano quando percebi que a Globo dedicou 5 vezes o tempo que as demais emissoras e me coloquei a refletir sobre os motivos para isso.
Para ter uma visão mais completa, resolvi buscar opiniões e, infelizmente, o assunto descambou para a “polarização” eventual: quem apoia Bolsonaro defendeu que a Globo deu 5 vezes mais tempo porque é contra o presidente e queria fazer do depoimento um espetáculo e quem é contra Bolsonaro disse que as outras TVs deveriam atacá-lo também.
O noticiário noturno tem a função elementar de informar a população sobre os principais fatos do dia, mesmo que o telespectador já tenha ouvido e visto tudo antes na internet com a inclusão de teses prontas de analistas que brotam no ambiente online. Informar a população sobre os fatos do dia é uma função essencial. Se há a leitura de que o noticiário está funcionando para atacar ou deixar de atacar significa que algo não está certo na percepção das pessoas em relação à função do jornalismo. Ou que o jornalismo está funcionando de uma maneira que provoca essa percepção. Ou as duas coisas.
Mas segui em frente em busca das justificativas técnicas para uma diferença de tempo tão gritante. Analisando os critérios editoriais que estão expostos no livro Jornal Nacional Modo de Fazer, de William Bonner, e observando a forma como a reportagem do JN foi construída, conclui que do ponto de vista editorial há dois pontos cruciais para dedicar tanto tempo ao depoimento do ex-ministro Pazuello: o contexto e a checagem.
Sobre o contexto, esse depoimento exigia uma carga de ambientação com o tema. Pazuello foi o ministro da Saúde de Bolsonaro que ficou mais tempo no cargo — foram 9 meses. Ele era o número 2 do oncologista Nelson Teich, que ficou um mês no cargo e saiu por divergências com Bolsonaro no enfrentamento à pandemia. Já Pazuello, general apresentado como um especialista em logística, abraçou a política presidencial. A passagem dele pelo Ministério da Saúde envolve vários episódios marcantes como: o fato de Pazuello não ter formação nem proximidade com a área da saúde; o estímulo ao tratamento precoce com medicamentos sem comprovação científica; a inércia nas negociações para a compra das vacinas e o desabastecimento de oxigênio em Manaus. Todos esses aspectos foram contextualizados na reportagem da Globo.
E sobre checagem, o ex-ministro Pazuello deu trabalho. Vejam que o depoimento dele deixou um grupo de senadores experientes e experts em narrativa confusos. Na própria ala governista, foi avaliado que Pazuello se saiu bem, o que não deveria representar um elogio. O fato é que ele focou em dar respostas longas com detalhes que não eram relevantes para o interrogatório de uma forma que já nem se sabia direito o que estava sendo questionado. Em pontos-chave ele foi cirúrgico: disse que não recebeu ordens diretas do presidente na condução da pandemia. O vídeo em que ele fala “um manda, outro obedece” ao lado do presidente foi evocado, mas Pazuello respondeu com um semblante sereno de que aquilo era uma brincadeira de internet. Em alguns questionamentos, ele chegou a ser irônico sobre o que deveria ou não ser perguntado. Sim, ele usou a narrativa como ninguém e deixou os senadores irritados. Foi chamado de mentiroso e saiu com o peito estufado com o ar de “missão cumprida!” Sim, ele mentiu e os jornalistas que cobriram o depoimento tinham o desafio de fazer a checagem em tempo recorde até o fechamento do noticiário noturno.
A necessidade de contextualização adicionada às peripécias narrativas de Pazuello deram trabalho para os editores dos telejornais. O jornalismo não poderia deixar de checar, buscar documentos e registros. E foi isso que o Jornal Nacional fez. Agora, ao meu ver, a pergunta se inverte. O porquê os demais jornais não fizeram a contextualização e checagem aprofundada?
Existia a possibilidade de contextualizar e checar em 5 minutos? Sim, um pouco. Foi o que a Band fez. O conteúdo não ficou tão aprofundado quanto o do JN, mas foi construída uma reportagem tratando dos pontos-chave do depoimento. Na reportagem do SBT, também se percebe que houve um esforço para colocar contrapontos às falas de Pazuello, mas de maneira muito rápida. Já no caso da Record, houve menos contexto e checagem e a emissora não mencionou que os medicamentos de tratamento precoce mencionados não têm eficácia científica comprovada. Nos três casos, o editor-chefe podia ter dado mais tempo e assim poderia se tentar corrigir esses pontos faltosos.
A CPI da Covid tem como um de seus líderes Renan Calheiros e é bem verdade que tem senadores em busca de holofotes. Mas isso não tira a legitimidade da investigação que apura as falhas cometidas na gestão da pandemia. Cada tubo de oxigênio que faltou, cada vacina que demorou para chegar fez muita diferença na vida da população. São vidas. É o principal assunto do país. Merece o espaço.
Vale aqui registrar uma obviedade, mas que precisa ser registrada: o jornalismo deve servir como um vigilante independente do poder. O fato de um jornal ser tecnicamente crítico aos erros não deve ser visto como uma anomalia. Já o contrário, sim.
Abaixo o resumo de cada reportagem:
GLOBO: assumiu tom crítico, incluiu contexto e checagens.
TEMPO: 17min44 (reportagem 1) + 7min09 (reportagem 2) + cabeça e pé que totalizaram 26 minutos.
Reportagem contextualizou
a) o depoimento de Pazuello: que o ex-ministro havia pedido adiamento (por suspeita de covid); que obteve habeas corpus para se manter em silêncio; b) a passagem de Pazuello pelo Ministério da Saúde (era vice de Teich, foi criticado por não ter experiência na área da saúde); c) a estratégia utilizada por Pazuello de mencionar a decisão do STF para tentar se eximir da responsabilidade, repassando-a aos prefeitos e governadores; d) que Mandetta e Teich deixaram o Ministério da Saúde após discordarem sobre cloroquina;
Reportagem fez contraponto ao que Pazuello disse: a) indicou que STF não tirou poder do governo federal; b) indicou que Pazuello foi fotografado em shopping sem máscara e que nunca questionou Bolsonaro pelo não uso da máscara e promoção de aglomeração; c) indicou que representante da Pfizer demonstrou que as ofertas feitas ao Brasil foram iguais aos outros países; d) indicou vídeo de Pazuello com Bolsonaro em que ele diz obedecer o que o presidente manda; e) indicou que Bolsonaro foi contra a compra da Coronavac; f) indicou documentos sobre crise em Manaus com datas anteriores ao dia 10 de janeiro, que é quando Pazuello disse que foi informado; g) indicou a atuação do Ministério da Saúde na promoção do site voltado para o tratamento precoce.
Reportagem apontou as seguintes perguntas e respostas: a) a experiência de Pazuello na área da saúde; b) sobre ordens de Bolsonaro para aplicar tratamento precoce com cloroquina; c) sobre orientações para uso de máscara; d) sobre convergência entre ministro e presidente para condução da pandemia e se as ações do ministro ocorreram a mando do presidente; e) sobre demora para compra das vacinas da Pfizer; f) sobre desinteresse do presidente na compra da Coronavac; g) sobre a data em que ficou sabendo do desabastecimento de oxigênio em Manaus; h) sobre o motivo para ter saído do cargo; i) sobre o site voltado para tratamento precoce.
A reportagem apontou os seguintes comportamentos de Pazuello: que foi evasivo nas respostas; que mentiu; que tentou desconversar.
Na segunda parte da matéria: destacou ataques; abriu com xingamento de Humberto Costa (PT-PE) que disse que o ministro deveria pedir desculpa para a população brasileira; Omar Aziz apontando que ele faltou com a verdade sobre a data de que foi informado sobre desabastecimento de oxigênio em Manaus; Senadora disse que Pazuello parecia estar brincando com a cara dos senadores e que já tinha mentido demais na comissão; sessão suspensa por causa das atividades no plenário, Pazuello passou mal e precisou se deitar; segunda parte do depoimento adiada para o dia seguinte.
BAND: reportagem objetiva, mas com esforço para inclusão de contexto e checagem.
TEMPO: 5 minutos.
Band começou informando que o ex-ministro optou por falar mesmo tendo habeas corpus que o permitia ficar calado para não se incriminar, mas salientou logo no início que o ex-ministro irritou os senadores. Também colocou logo no início o resumo dizendo que ele negou ter trabalhado contra o distanciamento social, uso de máscara e que o SUS não incentivou o tratamento precoce. E mencionou — que são medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid; Ministro destacou que não houve orientação para o tratamento precoce e sim para a dosagem caso o médico decidisse utilizar o medicamento.
Ex-ministro disse que não recebeu orientação de Bolsonaro; e que apesar das manifestações contra a Coronavac, Bolsonaro estava apenas se posicionando politicamente e não deu orientação a ele; deu contexto: incluiu trecho de Bolsonaro dizendo quem manda sou eu, e de Pazuello dizendo um manda outro obedece; Mostrou contradição, mencionou no texto que o discurso de Pazuello estava diferente; Colocou trecho oposição criticando discurso; Na passagem, disse que subiu o tom e contextualizou a parte mais quente do depoimento; Disse que negou o que foi falado por representante da Pfizer e Weingartner e que a CPI podia fazer uma acareação entre os três; Destacou os momentos de tensão: discussão e resposta atravessada sobre a demora para responder a Pfizer; crise de Manaus e citou que Pazuello foi desmentido por parlamentares sobre o tempo que faltou oxigênio em Manaus; e ainda no final o apresentador perguntou se a canalhice tem limite.
SBT: reportagem objetiva, mas com esforço para inclusão de contexto e checagem.
TEMPO: 5 minutos e 50 segundos
VT abre mostrando com quem Pazuello chegou (com o senador Bolsonaro) e que Pazuello fez um resumo das ações a frente da pasta e que decisões foram tomadas em conjunto com municípios e estados; Tinha direito a permanecer em silêncio respondeu aos senadores; texto mencionou que foi de maneira sem paciência e atravessada e que houve primeiro conflito que ele foi repreendido pelo comportamento por senadores; disse que não recebeu ordens de Bolsonaro nem assessoramento paralelo, mas confirmou ter recebido gente de fora, Wizard por exemplo; contextualizou o trabalho de Pazuello a frente da pasta e citou a saída dele em meio às críticas a atuação no colapso de Manaus que gerou abertura de inquérito no STF; ex-ministro disse que não foi alertado sobre a crise e que o estoque de oxigênio ficou negativo durante 3 dias só e colocou o protesto do senador que ficou indignado com isso; mencionou que cloroquina não tem comprovação científica e que Pazuello disse que não recebeu orientações do presidente sobre o uso do medicamento; Mostrou a contradição ao resgatar a sonora do presidente Bolsonaro mencionando cancelamento contrato com instituto Butantan e colocou vídeo de Bolsonaro com ele dizendo que um manda outro obedece; mostrou contraposição com Weingartner e diretor Pfizer; negou incompetência, não foi lento para comprar vacina e não ignorou carta da Pfizer e explicou compra 10% Covac consórcio; passagem diz que depoimento dividiu parlamentares… governistas apoiam, oposição aponta contradição nos depoimentos e tentativa de blindar Bolsonaro; termina com pedido de requerimento de quebra de sigilo de Pazuello sobre a compra de galpões pelo Ministério da Saúde.
Record: entre as 4 analisadas, apresentou o menor nível de contexto e checagem.
TEMPO: 5 minutos e 40 segundos.
A reportagem abriu com a saída dele da sessão em que ele desmente que tenha passado mal; na sequência disse que Pazuello se dedicou ao máximo para salvar vidas e na sequência que a crise de desabastecimento durou apenas 3 dias. A fala de Pazuello dizendo que agiu com agilidade foi emendada na do senador do Amazonas que criticou Pazuello. Na sequência entrou a passagem dizendo que Pazuello falou mesmo tendo um habeas corpus para não falar; reportagem colocou os questionamentos em off e deu a fala de Pazuello esclarecendo os pontos sobre a demora para assinar com a Pfizer; Mencionou a nota do TCU para contrapor; colocou pergunta e resposta sobre o porque não se reuniu com a Pfizer; mencionou o vídeo do Pazuello e Bolsonaro e, na sequência, colocou a explicação de Pazuello; explicação do porquê não aderiu totalmente ao consórcio Covax; disse que não recebeu ordens para tratamento precoce — reportagem não contextualizou a pergunta, nem mencionou existência do site. A reportagem não apresentou a checagem das falas do ministro. Também não incluiu na reportagem que os senadores protocolaram o registro de que Pazuello mentiu em relação à data que ficou sabendo do desabastecimento de oxigênio em Manaus.
Texto publicado originalmente por objETHOS.
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Vanessa da Rocha é jornalista, mestranda do PPGJor/UFSC e pesquisadora do objETHOS.