Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Pilhas de dinheiro, política e mídia

O uso da imagem na comunicação de massa nos propicia permanentemente exemplos bastante curiosos tanto da simples incompetência editorial, como da utilização distorcida ou fraudulenta dos ‘testemunhos visuais’ fotográficos. Ao longo de minha vida de pesquisador do assunto, toda vez que encontrei um desses exemplos me vi com a incômoda sensação de que os espectadores/leitores estavam sendo ludibriados por uma compreensão equivocada dos mecanismos de produção da imagem e o papel da mídia na sociedade, destacadamente a porção jornalística dessa mídia. Assistindo aos telejornais de 29/9/2006, quando, como a prova cabal das recentes acusações ao PT, foram exibidas fotos de pilhas de dinheiro, em plano geral e plano detalhe, de frente e de perfil, acompanhadas pela narrativa, em tom grave, do texto explicativo – já que as fotos, por si só, pouco ou nada dizem –, experimentei novamente esse incômodo.

A lógica novecentista, que trouxe a fotografia (fixa ou em movimento) a um lugar destacado nos veículos de imprensa, estimulou o crescente uso da imagem nos jornais e revistas, visando a ilustração da matéria jornalística, servindo de base documental à reportagem, dada uma certa compreensão de sua objetividade e neutralidade. Destaque-se que essas são qualidades sobejamente atribuídas à fotografia, bem como pretendidas na prática de um bom jornalismo, aquele que deveria ser a mais instigante ferramenta de uma sociedade democrática. Assim, uma imprensa forte, livre de censuras e com sólidos compromissos éticos, auxiliada por ferramentas investigativas coerentes e instrumentos de comprovação consistentes, como a fotografia, serviria para gerar as informações fidedignas, pelas quais a sociedade pudesse se manter em constante atuação política, que a manutenção da democracia exige.

Bem, o que nunca podemos esquecer ou deixar de lado é o fato de que tanto os textos jornalísticos, quanto as fotografias de reportagem, são feitos por seres humanos, que não podem jamais abandonar suas convicções pessoais, seus pontos de vista, o lugar de onde vêem a coisa que pretendem reportar. A impossibilidade de superar esses limites da própria condição humana dos jornalistas e fotógrafos levou à constituição de regras de investigação jornalística e produção da reportagem visual, bem como a um conjunto de normas éticas, que mantém uma certa confiabilidade das informações oriundas dos meios de comunicação de massa. Estas regras garantiriam uma certa distância entre o ‘ponto de vista’, sempre presente, e a mentira, a falsificação da realidade ou a transformação da notícia em simples espetáculo para conquista de audiência.

Prova do delito

Frente a isso, o que se pode dizer sobre manchetes e chamadas televisivas, anunciando a divulgação (‘finalmente!’, sugeriram os veículos de comunicação) das imagens da prova material do crime pretensamente cometido por políticos, que teriam negociado um dossiê repleto de provas de desmandos do candidato adversário? Imagino, inicialmente, que o caráter obviamente sensacionalista desta conduta deva ter causado certo desconforto no espectador/leitor, já que, ao mesmo tempo, os meios de comunicação aparentaram absoluto desinteresse no conteúdo do referido dossiê. Por que um potencial escândalo de corrupção em um nível de governo seria mais interessante do que outros?

Não me atrevo ainda a afirmar se a ‘falha’ se deu, como listado acima, por simples incompetência, distorção ideológica ou fraude da mídia, mas, qualquer que seja a razão, a sociedade está frente a um fenômeno tão grave quanto a corrupção diariamente noticiada pelos jornais. O principal meio de geração e difusão da informação, matéria-prima da democracia, ao menos no caso brasileiro, é primariamente precário.

Em seguida, não bastasse o ignorar puro e simples de um dos aspectos do escândalo, vem a divulgação das ‘bombásticas’ fotografias. Enquanto um dos acusados apresentava o seu depoimento à Polícia Federal, uma ‘anônima’ (conforme divulgado pela Folha de S. Paulo e pelo O Estado de S. Paulo) autoridade desta instituição distribuía à imprensa as fotografias do dinheiro, que, segundo essa fonte, seria a principal prova do delito.

Ação manipulatória

A decepção foi enorme! Imagens de pilhas de dinheiro, sem qualquer elemento identificador de um contexto comprometedor, foram publicadas com grande estardalhaço, acompanhadas de textos explicativos da gravidade do que estava sendo mostrado, já que as imagens, por si só, nada mostravam, a não ser o óbvio: pilhas de papéis encabeçadas por notas de dólares e reais. Assim como a foto de uma flor não pode ser tomada como prova da chegada da primavera, essas fotos nada comprovam além do fato de aquela pilha ter sido posta na frente da câmera e registrada em ‘poses’ diversas.

Além disso, como os próprios veículos se adiantaram em afirmar, as imagens foram obtidas por meios não-oficiais, o que não permite, sequer, a comprovação de que aquela pilha de papel teria de fato sido a mesma apreendida pela ação da polícia, o que, de resto, não teria a menor importância, se as imagens fossem meramente ilustrativas da matéria – e não o foco principal. Fatos recentes parecem corroborar o juízo de que a imagem de muito dinheiro junto, associado à idéia de um crime, provoca especial atenção na audiência.

Resumindo, o estranho tratamento distinto para notícias da mesma natureza, a ‘espetacular’ divulgação de fotografias de fonte duvidosa e sem maiores esclarecimentos sobre os fatos noticiados e todos esses eventos difundidos às vésperas de uma das mais importantes eleições da história do país parecem indicar uma notável ação manipulatória do imaginário do eleitorado. Senão, que importância teria a imagem da pilha de notas, para que sua divulgação fosse promovida à sensação mediática da semana?

Muito cuidado

Pouco se pode ainda dizer dos motivos que levaram os meios de comunicação a agir dessa forma, mas o conjunto das possibilidades é pequeno: ou a mídia tem interesse eleitoral em algum candidato, ou a concorrência sensacionalista pela audiência chegou a tal ponto que provocou um surto de louca irresponsabilidade nas empresas do setor, deixando-as dispostas até mesmo a sacrificar o momento maior da democracia.

De qualquer forma, qualquer que tenha sido o motivo, parece estar além da possibilidade de ato acidental, indicando, infelizmente mais uma vez, que a idéia de um sistema de informação razoavelmente confiável naufragou no turbulento mundo das corporações e dos negócios, deixando a sociedade sem uma de suas ferramentas mais preciosas para a participação política. Por outro lado, esse episódio, ao lado de tantos outros, tornará mais difícil a manutenção da oposição sistemática dos veículos de comunicação às pressões cada vez maiores para a instalação de mecanismos de controle social da mídia.

Enquanto isso, muito cuidado com o que lê e vê, amigo eleitor!

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Antropólogo, professor do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação da Unicamp, pesquisador-associado do Laboratório de Média e Tecnologias da Comunicação (MediaTec), Campinas, SP