Houve um tempo em que o jornalismo via as plataformas de redes sociais com grande entusiasmo. Em 2017, pesquisadores do Tow Center da Universidade de Columbia documentaram esse momento no relatório “A imprensa nas plataformas: como o Vale Silício reestruturou o jornalismo”. Para Emily Bell e demais autores, o impacto de plataformas no jornalismo foi maior do que o da migração do impresso para o digital, já que elas não só distribuem como também determinam as notícias que o público vê. E mais: publishers estavam transferindo a maior parte do jornalismo que produziam para plataformas de terceiros, mesmo sem a garantia de que o investimento daria retorno.
A “premonição” se concretizou e, em 2019, o mesmo Tow Center atualizou muitas das discussões do primeiro relatório em “Plataformas e publishers: o fim de uma era”. Para os pesquisadores, escala sem receita, queda de tráfego nos sites de notícia e desinformação foram os principais motivos do “divórcio”. Mas é claro que a equação não é, assim, tão exata. Google e Facebook, por exemplo, têm feito vários acenos ao jornalismo, investindo dinheiro nas organizações de notícias (mesmo que isso represente uma parcela mínima de suas receitas). Neste texto para o especial “O jornalismo no Brasil em 2021”, Guilherme Felitti critica esse movimento e diz que “as Big Tech não são amigas do jornalismo”. E alerta:
“Pela última década, redações e gigantes de tecnologia vivem uma dinâmica semelhante à do artista popular que, em calçadões pelo Brasil, dança com uma boneca de pano colada ao corpo. O dançarino são as Big Techs, enquanto o jornalismo é jogado para cima e para baixo, sem muita saída, conforme os movimentos do parceiro. A concentração de poder e dinheiro na mão de poucas empresas de tecnologia atingiu diretamente o jornalismo não apenas por desmontar o modelo de negócio no qual redações dependeram por décadas, mas também por introduzir incontáveis armadilhas travestidas de boias de salvação. Acuados, os veículos as agarraram consecutivamente, apenas para afundar ainda mais. Ou, para ficarmos na metáfora do começo, serem jogadas para cima e para baixo pelo dançarino sem escolha”.
Este pequeno histórico serve de base para o argumento central deste artigo: atualmente, o jornalismo repete o momento registrado em 2017 e vive um encantamento com outro tipo de plataformas: as de newsletters.
Há algumas diferenças importantes entre plataformas de newsletters e de redes sociais, que inclusive motivam esse encantamento. Elas são livres de algoritmos, na medida em que cada boletim informativo vai diretamente para a caixa de e-mail do assinante; são fruto de uma escolha do leitor, que decide por receber aquele conteúdo, diminuindo o caráter acidental dos feeds das redes sociais; possibilitam um relacionamento mais próximo e direto com a audiência; e são conversores em potencial de leitores pagantes que, ao gostarem da curadoria de uma newsletter, podem decidir assinar aquele veículo jornalístico.
Grandes redações têm investido na criação de plataformas próprias de newsletters, talvez pela experiência conturbada com as redes sociais, que relatamos acima. No entanto, um novo movimento está complexificando o ecossistema jornalístico: em diversos países, profissionais de destaque estão deixando redações de referência para criarem suas próprias newsletters. Partindo para uma “carreira solo”, jornalistas experientes como Glenn Greenwald (ex-Intercept), Casey Newton (ex-The Verge) e Andrew Sullivan (ex-New York Magazine) viraram eles mesmos uma mídia jornalística. E com algo em comum: a escolha do Substack como plataforma para o novo empreendimento.
Além de possibilitar contribuições financeiras dos assinantes, tornando a remuneração dos jornalistas uma realidade, o Substack tem também seu próprio programa para remunerar alguns escritores individuais. É como se a plataforma de newsletter virasse o empregador daquele jornalista, só que nos mesmos moldes de Uber e iFood. Ou seja: sem qualquer compromisso trabalhista, ainda mais sendo uma empresa transnacional.
Assim, a busca dos jornalistas solo por mais independência (já que se livram das amarras editoriais das antigas empresas) e melhor remuneração (pois a contribuição dos leitores vai direto para eles — tirando a taxa da plataforma) pode ser, na verdade, um tiro no pé. Em outras palavras: a dependência só estaria trocando de mãos — de uma empresa jornalística para uma plataforma de newsletter. E com algumas desvantagens trabalhistas que hoje já são bem conhecidas pelos motoristas e entregadores de aplicativos.
Uberização do jornalismo
Vejamos a questão mais a fundo. O Substack Pro elege determinados escritores para remunerar, mas não diz quais são os critérios de escolha e nem quem são. Esta reportagem da Vox traz denúncia de Jude Doyle, escritora não-binária que utilizava o Substack desde 2018, mas decidiu sair do serviço. Segundo ela, a plataforma está remunerando autores que “odeiam ativamente pessoas trans e mulheres, argumentam incessantemente contra nossos direitos civis”. Assim como acontece com Facebook, Google, Uber e tantas outras plataformas, falta transparência.
Outro ponto de crítica é discutido nesta reportagem do Rest of World: o Substack anunciou recentemente que está expandindo para outros países, incluindo o Brasil. Mas até que ponto a plataforma de newsletters está disposta a se responsabilizar por profissionais que trabalham em países onde o jornalismo pode ser perigoso? Um dos casos citados é o de Gaía Passarelli, que deixou seu emprego de editora no BuzzFeed Brasil para lançar a newsletter Paulicéia. Passarelli está entre os 12 vencedores do Substack Local, que investiu US$ 1 milhão para apoiar novas publicações de notícias locais na plataforma. Qualquer semelhança com Google News Initiative e Facebook Journalism Project não é mera coincidência.
Levando em consideração que o Brasil é um país onde jornalistas sofrem diversos tipos de violência, como o Substack agiria se um dos profissionais que remunera estivesse em apuros? Em nota, a plataforma respondeu à reportagem que “está firmemente comprometida com a liberdade de imprensa e, embora não possamos controlar as ações de governos estrangeiros, defendemos firmemente a liberdade de imprensa em nossa própria plataforma e com nossas próprias políticas”. Ou seja, não se responsabilizam.
O histórico difícil do relacionamento entre jornalismo e plataformas de redes sociais deveria servir de lição para que, agora, profissionais não cometessem os mesmos erros com plataformas de newsletter como o Substack. E ainda há o agravante desse novo relacionamento não se dar entre empresas, mas entre jornalistas solo e plataforma. Nem precisamos dizer de que lado a corda pode arrebentar…
Texto publicado originalmente por objETHOS.
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Lívia de Souza Vieira é professora de Jornalismo da UFBA e pesquisadora do objETHOS.