Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Pluralismo de ideias e as versões

No domingo (14/3), foi realizada a primeira rodada das eleições regionais francesas. Surpreendentemente, nem a diminuição do número de cadeiras da Union pour un Mouvement Populaire (UMP) – partido de Nicolas Sarkozy – e tampouco o aumento de projeção política da agremiação de extrema-direita foram os fatos mais discutidos pela imprensa do país. O principal assunto de colunistas, editorialistas, repórteres e pauteiros durante a semana após o pleito foi a maciça abstenção de eleitores.


Para aqueles que não estão por dentro da situação, vale o lembrete: a taxa de abstenção – ou seja, pessoas que se recusaram a votar – foi de 50%, um número recorde na história da França. A imprensa buscou diversas explicações para o fenômeno, ouviram-se especialistas, políticos, acadêmicos. Argumentos de vários tipos foram apresentados à opinião pública, tais como a apatia política da juventude, voto de protesto, insatisfação com a política tradicional etc. Todavia, a questão continua aberta, à procura de uma resposta.


Uma semana depois (21/3/2010), no dia em que seria realizada a segunda rodada da mesma eleição, os internautas que acessaram o site daquele que é o maior e mais conhecido periódico francês, Le Monde, foram surpreendidos por uma pergunta em forma de manchete: ‘Por que você vota? Por que você não vota?’ (Pourquoi votez-vous? Pourquoi vous abstenez-vous?).


Interatividade na era da web 2.0


Ao clicar no link, o usuário é encaminhado a uma página, na qual encontrará o seguinte texto:




‘Desde o primeiro turno das eleições regionais, domingo 14 de março, mais de 50% dos franceses não foram as urnas. Se você faz parte do partido mais votado da França, aquele dos abstencionistas, então nos explique por que você também não votará hoje. Se você decidiu votar este domingo, tendo ou não votado no último domingo, nos explique por que você escolheu ir à cabine de votação hoje. Explique suas motivações, pois uma seleção de depoimentos será publicada no Le Monde.fr‘ [Tradução livre do original: ‘Lors du premier tour des élections régionales, dimanche 14 mars, plus de 50 % des Français ne se sont pas rendus aux urnes. Vous faites partie du premier parti de France, celui des abstentionnistes, expliquez-nous pourquoi vous ne voterez pas aujourd’hui. Vous avez choisi de voter ce dimanche, que vous ayez ou non voté dimanche dernier, pourquoi vous rendez-vous dans l’isoloir aujourd’hui ? Expliquez-nous vos motivations, une sélection de témoignages sera publiée sur Le Monde.fr.’


Além de uma enquête, acredita-se que o site do Monde abre um espaço de interconexão aparentemente desconhecido pela mídia tradicional. O ponto que se pretende defender neste pequeno artigo é que esta atitude do jornal pode demonstrar um amadurecimento dos usos e das noções de interatividade que marcam a era de comunicação na web 2.0.


A decisão do periódico não parece apenas uma jogada de marketing para atrair mais leitores ou page views – mesmo que essa não seja uma hipótese desconsiderada. No entanto, argumenta-se que a enquête é uma tentativa de trazer a este novo cenário midiático o pluralismo que se espera da publicação online de notícias.


Novo modelo de estruturação das rotinas


Se o fenômeno da maciça abstenção nas eleições não pode ser respondido pelas fontes tradicionais, por que não perguntar diretamente aos responsáveis por ele? Sabe-se que com as recorrentes crises da mídia impressa, as redações não possuem uma estrutura viável para executar essa tarefa. Voilà, é impossível designar repórteres para ouvir milhões de pessoas e entender a razão da não presença às urnas. Porém, a internet possibilita a custos praticamente inexistentes essa conexão, o que permite argumentar que a imprensa tradicional começa a enxergar na rede mundial de computadores uma aliada ao seu próprio ciclo de produção.


Uma das principais críticas à imprensa tradicional é exatamente a ausência de pluralidade de pontos de vistas sobre um determinado tema. De acordo com as ‘velhas’ rotinas produtivas, bastava aquelas fontes tradicionais falarem que o problema estava resolvido. Essa prática, todavia, parece esquecer que o mundo se complexificou e que as problemáticas atuais não se solucionam somente com a estratégia de ouvir o ‘outro lado’. No caso das abstenções, é válido perguntar: quem é o outro lado? Pois bem, são milhões de franceses e neste caso seria válido ouvir somente alguns entre eles, aqueles que podem ser considerados como ‘fontes legítimas’?


A atitude do jornal Le Monde parece mostrar que estas perguntas continuam sem respostas definitivas, mas também aponta para um novo modelo de estruturação das rotinas produtivas da imprensa. Muito mais do que uma enquête, esta utilização da interatividade característica da internet demonstra uma interessante busca de pluralismo por parte da mídia tradicional.


Mudança de paradigma


Explica-se: ao abrir os canais de comunicação para que os leitores, que são ao mesmo tempo consumidores e atores das notícias, expressem seus pontos de vista e também expliquem suas razões para o já referido fenômeno, a imprensa mostra que neste mundo complexo suas antigas formas de apuração – baseadas em fontes legítimas – não resolvem mais o problema. Ela reconhece que é imperativa a busca por pluralismos de idéias e de versões. E que esta informação pode estar na cabeça de pessoas que não figuram nos caderninhos de telefones dos repórteres. Conclusão esta, é verdade, que vários blogs já conhecem há muito tempo.


Desta forma, as novas tecnologias fornecem uma nova possibilidade para que a imprensa amplie a pluralidade de vozes dos que opinam em suas páginas e, outrossim, torne viável uma explicação mais completa sobre os problemas sociais contemporâneos. Pode-se falar também de uma quebra do monopólio da escolha das vozes que serão públicas, de tal maneira que o leque de discursos na arena pública midiática aumenta exponencialmente.


É evidente que esta atitude do portal Le Monde.fr ainda não representa o nível médio da relação entre jornais, internet e principalmente internautas – e que também é cedo para julgar sua eficácia. Porém, trata-se de um caso que pode representar uma mudança de paradigma na imprensa tradicional, uma ruptura que pode resultar na formação de um espectro de vozes públicas mais plural. Este artigo não encerra o debate. Ao contrário, o deixa aberto e à procura de respostas às indagações propostas.

******

Jornalista e estudante de Sociologia, Rennes, França