Resposta mais enérgica da presidente Dilma Rousseff às manifestações populares iniciadas em junho, a vinda de médicos estrangeiros para atuar no Brasil desencadeou grande polêmica na área de saúde pública e na imprensa. Em algumas cidades, a chegada dos profissionais de outros países foi marcada por protestos e vaias. Em Fortaleza, médicos cubanos foram duramente hostilizados por integrantes do Sindicato dos Médicos do Ceará ao final do primeiro dia do curso promovido pelo programa Mais Médicos. Representantes do sindicato alegaram que o protesto era dirigido aos gestores do curso, e não aos médicos estrangeiros. Para o Ministério da Saúde, a atitude foi intolerante, racista e xenófoba. O Conselho Federal de Medicina criticou atos de xenofobia, mas reforçou que a vinda dos médicos desrespeita as leis brasileiras. Uma jornalista do Rio Grande do Norte chegou a postar no Facebook que as médicas cubanas parecem “empregadas domésticas”. O comentário teve uma ampla repercussão negativa e foi apagado pouco depois.
Entidades de classe sustentam que no Brasil não faltam médicos, mas sim condições de trabalho. Também foi posto em questão o pouco incentivo para manter os profissionais brasileiros em regiões pobres. O número de médicos brasileiros inscritos no programa preencheu apenas 10 % das vagas. Centenas de médicos estrangeiros já chegaram ao Brasil, entre argentinos, uruguaios, espanhóis portugueses, italianos, russos e cubanos. Os profissionais vão passar por três meses de treinamento com aulas técnicas, de cultura brasileira e de língua portuguesa.
A falta de transparência sobre a vinda dos médicos de Cuba foi alvo da maior parte das críticas. Ao contrário dos médicos de outros países, os cubanos não receberiam o pagamento diretamente. A ilha é comandada por um governo ditatorial desde 1959 e o atendimento em saúde primária é considerado um dos melhores do mundo. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (3/9) pela TV Brasil discutiu a reação da mídia ao programa recém-implantado pelo governo federal.
Para discutir o tema, Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro o médico sanitarista Reinaldo Guimarães, que foi secretário de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde. Com mais de 40 anos de experiência, Guimarães é mestre em Saúde Coletiva e foi vice-presidente de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Em São Paulo, o programa contou com a presença do jornalista e cientista político Leonardo Sakamoto. Coordenador da ONG Repórter Brasil, Sakamoto cobriu conflitos armados em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Foi professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e é professor de Jornalismo da PUC-SP. O convidado no estúdio de Brasília foi João Domingos, repórter especial e coordenador de Política de O Estado de S.Paulo na capital federal. Domingos trabalhou na Folha de S.Paulo, no Jornal do Brasil e em O Globo.
A foto que fala
Antes do debate ao vivo, em editorial, Dines avaliou que o único desempenho positivo da mídia foi a publicação da chocante fotografia dada na primeira página da Folha de S.Paulo, de médicos cearenses vaiando os profissionais cubanos. “Caso raro de uma vaia sem som, apenas gestual, que escancarou as altas doses de histeria ideológica, corporativismo, xenofobia e até racismo na oposição à importação de médicos para atenuar as nossas carências”, disse Dines. Para ele, a imprensa reagiu à vinda dos médicos cubanos por razões ideológicas: “Se Israel há décadas exporta seus agrônomos e a Índia os seus especialistas em informática, por que ignorar que Cuba exibe altos índices em matéria de prevenção?”.
A reportagem exibida no início do programa entrevistou a médica Lygia Bahia, especializada em Saúde Pública. Para ela, apenas uma pequena parte dos profissionais brasileiros hostilizou os médicos estrangeiros: “É claro que eu considero lamentável que alguns dos meus colegas médicos tenham manifestado xenofobia [e] preconceito, mas isso é uma minoria, não representa o conjunto da categoria médica de maneira alguma”. A mídia ainda segue a polarização, na opinião da médica, entre as entidades médicas, contrárias ao projeto, e o governo que tenta implantá-lo. Lygia Bahia ressaltou que o Mais Médicos não pode ser visto como uma resposta aos protestos populares iniciados em junho: “As manifestações não solicitaram mais médicos, elas solicitaram ‘hospital padrão Fifa”, ‘enfia R$ 0,20 no SUS’”. O que a população pedia, na opinião da médica, era um atendimento com mais qualidade.
“Nós não vamos resolver o problema do sistema de saúde brasileiro com estrangeiros, isso pode ser uma medida provisória e, de fato, foi uma medida provisória, aprovada como medida provisória, mas nós precisamos resolver definitivamente esse problema. Como? Formando médicos”, sustentou Lygia Bahia. Para ela, a questão da língua não pode ser minimizada porque até médicos brasileiros muitas vezes enfrentam dificuldades para se comunicar com a população de regiões mais distantes. “A língua é um problema porque a relação médico-paciente – a relação enfermeiro-paciente, a relação fisioterapeuta-paciente – é uma relação muito delicada, que exige uma comunicação importante para que haja efetividade terapêutica”, disse Lygia.
O eco das vaias
O programa também entrevistou o médico cubano Juan Carlos Raxach, que vive no Brasil há mais de dez anos. Raxach confessou ter ficado chocado com as agressões aos seus colegas cubanos. “Foi muito duro escutar profissionais da área de Saúde deste país falarem que Cuba não tem medicina de excelência, que a única [coisa] que Cuba tem de excelência são os charutos. Estavam, realmente, falando de uma forma tão imoral, tão deselegante; falar assim de um colega profissional, confundindo um problema ideológico com um problema de formação”, lamentou Raxach. Para ele, a imprensa poderia ter procurado entender mais profundamente o sistema de saúde cubano em vez de ficar apenas repercutindo as críticas à vinda dos profissionais da ilha: “Eu acho que a mídia brasileira, com o maior respeito, muitas vezes se nutre desse lugar de escândalo, de terrorismo. Isso dá audiência”.
Raxach defendeu uma ampla reforma do Sistema Único de Saúde (SUS). “Existe uma grande deterioração do SUS, um sucateamento de nosso sistema. E sobre isso nós temos que falar porque eu acho que não é só de mais profissionais que nós precisamos, precisamos também ter um olhar sobre o Sistema Único de Saúde que temos e que está sendo sucateado. Sucateado, terceirizado e privatizado”, criticou. Ele explicou que, em Cuba, o foco da medicina é a prevenção: “O profissional de saúde cubano se interessa mais que você não fique doente. Eu acho que vai ser uma diferença no tratamento: as pessoas vão aprender a se prevenir de doenças, tentar não ficar doentes. A medicina de Cuba tem como base isso: a prevenção. E com certeza e medicina de família é um alicerce desse projeto”.
No debate ao vivo, Dines lembrou que a mídia aceitou com naturalidade a vinda de médicos cubanos promovida pela prefeitura de Niterói, no Rio de Janeiro, nos anos 1990. O intercâmbio foi estabelecido pelo governo para controlar sucessivas epidemias de meningite e dengue. O médico Reinaldo Guimarães explicou que o convênio trouxe ao Brasil especialistas em saúde da família e que o conflito ideológico naquele momento era menor. “Existe um tensionamento político no Brasil de hoje que confunde tudo e que está passando das medidas. Essas cenas na recepção de médicos estrangeiros, em particular cubanos, em Fortaleza, são de uma violência, de uma ignorância brutal”, lamentou Guimarães. Para ele, a atitude dos médicos que promoveram o ato, a maioria jovens, apenas reflete o posicionamento exacerbado das entidades de classe.
“Na imprensa, o objetivo central do programa, que é colocar médicos onde médicos não quiseram ir, se torna um problema secundário frente, por exemplo, se o governo estava ou não negociando antes com Cuba”, criticou Reinaldo Guimarães. O sanitarista ressaltou que afirmar que Cuba “não tem médicos na prateleira” revela um desconhecimento da questão. “As ações médicas cubanas no exterior são a principal expressão do soft power cubano há 50 anos. São mais de 70 países, quase 140 mil profissionais de Saúde que já foram mandados [para outros países]. Cuba, em função do bloqueio norte-americano e do colapso da União Soviética, precisa desesperadamente de divisas. E este programa de ajuda externa na área de Saúde, por um lado, é uma demonstração de solidariedade e, por outro, é uma fonte importantíssima de captação de divisas”, explicou o médico. Reinaldo Guimarães ponderou ainda que a pauta de reivindicações dos profissionais brasileiros não pode ser posta em segundo plano, e que o programa Mais Médicos não foi elaborado para atender a essas reivindicações.
Luta de classes na mídia
Na opinião de Leonardo Sakamoto, parte dos jornalistas brasileiros confunde opinião com informação e muitos deles “escorregaram na casca de banana” na cobertura do programa Mais Médicos. Sakamoto destacou que colunistas chegaram a chamar os médicos cubanos de indolentes e incompetentes e classificaram a aeronave que os trouxe até o Brasil de “avião negreiro”. “Nós jornalistas acabamos não percebendo que o acúmulo e a sobreposição dos argumentos, muitas vezes preconceituosos, que nós lançamos aos nossos leitores, telespectadores e ouvintes causam danos”, afirmou Sakamoto. O posicionamento da mídia acaba, indiretamente, influenciando o comportamento de pessoas mais jovens e com pouca formação política.
Para Sakamoto, não é apenas a questão partidária que contamina o trabalho da imprensa, é também a forma como os jornalistas estão inseridos na sociedade. Por pertencerem a uma classe social com poder aquisitivo mais alto em relação à maioria da população, os jornalistas podem não se sensibilizar com o drama daqueles que não têm plano de saúde: “Jornalista é trabalhador, mas não se vê como trabalhador, se vê como parte pertencente ao mesmo nível social do patrão. E só percebe que é trabalhador quando rola o ‘passaralho’ na redação e é mandado embora. ‘Bilhete azul? Eu não sou seu amigo?’. ‘Não, você não é meu amigo’. Da mesma forma o jornalista se vê por uma outra classe social e diz: ‘Esse problema não existe no Brasil, o Brasil tem médicos, especialistas para dar e vender’”. Sakamoto questionou como os jornalistas podem cobrir com eficiência um problema social que desconhecem.
Para João Domingos, a mídia não é contrária à importação de médicos estrangeiros, apenas veicula as diferentes opiniões: “Talvez com relação aos cubanos possa ter havido uma exacerbação, não da mídia em si, mas da mídia retratando o que se tem falado”. Para o jornalista, a polarização entre o PT e o PSDB contaminou o programa Mais Médicos. O programa é de grande interesse nacional e a mídia precisa desvendar os assuntos mal esclarecidos. “Compete à mídia desvendar o programa, noticiar”, disse Domingos. O jornalista não acredita que um país com as características de Cuba tenha à disposição cerca de três mil médicos “na prateleira” para entregar como se fosse “um saco de açúcar”. O repórter sublinhou que O Estado de S.Paulo mostrou que havia negociação entre os governos de Brasil e de Cuba muito antes das manifestações das ruas e do anúncio oficial do programa Mais Médicos. Por isso, ele acredita que houve um “jogo de esconde-esconde” por parte do governo.
“Eu não digo que a mídia está rejeitando a vinda dos médicos, sejam eles de qualquer país, muito menos os cubanos. Os cubanos já estiveram por aqui e fizeram bons trabalhos. Há esse reconhecimento e matérias foram publicadas [a esse respeito]”, argumentou João Domingos. Hoje, as pautas sobre os médicos cubanos que participarão do projeto estão focadas no contrato firmado entre o governo brasileiro e a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). “Não se sabe quanto o médico vai receber. Esse dinheiro vai para o governo cubano? Tudo isso é notícia. Essas pessoas vêm para o Brasil, vão para o interior e vão conviver com a sociedade. Elas se tornam parte do Brasil”, disse o jornalista. Domingos ressaltou que a imprensa repercutiu a fala de entidades de classe contrárias à vinda dos médicos estrangeiros, mas não adotou um posicionamento editorial “raivoso” em relação a esses profissionais.
A vilã do programa
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 699, exibido em 3/9/2013
No elenco da telenovela politica Mais Médicos, a mídia não está entre os “mocinhos”, mas entre os vilões. Seu único desempenho positivo foi a publicação na capa de Folha da foto da vaia dos médicos cearenses na chegada dos colegas cubanos. Caso raro de uma vaia sem som, apenas gestual, que escancarou as altas doses de histeria ideológica, corporativismo, xenofobia e até racismo na oposição à importação de médico para atenuar as nossas carências.
Os quase cinco mil médicos cubanos não resolverão as dramáticas deficiências da saúde pública. Faltam quinze mil profissionais, o ideal seriam médicos brasileiros, mas mesmo médicos nascidos no Sul às vezes têm dificuldade de entender expressões usadas pelos conterrâneos analfabetos nos grotões de miséria do Brasil profundo, onde “figo” significa “fígado”, “zóio” significa “olhos”, e assim por diante.
Nossos postos de saúde são geralmente precários, subequipados, sem medicamentos básicos, mas a carência essencial é de médicos. É com mais médicos que os problemas começarão a ser resolvidos. A mídia detestou a vinda dos cubanos por razões puramente ideológicas.
Se Israel há décadas exporta seus agrônomos e a Índia os seus especialistas em informática, por que ignorar que Cuba exibe altos índices em matéria de prevenção?
Todas as ciências são humanitárias, mas as ciências médicas representam a quintessência da solidariedade e do altruísmo. Tratá-la como matéria partidária é uma desumanidade.
A mídia na semana
>> A primavera da mídia brasileira: a façanha tem um lugar garantido na história da nossa imprensa. Não foi um furo, denúncia ou cruzada. Foi o mea-culpa do Globo publicado no domingo (1/9), reconhecendo que o apoio do jornal ao golpe militar de 1964 foi um equívoco. Com destaque, sem minimizações e palavreado dúbio, mas também com dignidade, o jornal incluiu na série “Memória Globo” seu posicionamento errado durante o golpe que derrubou o presidente João Goulart e instalou a ditadura de 21 anos. O reconhecimento do erro vinha sendo discutido internamente havia anos, deveria acontecer antes das jornadas de junho, mas o projeto de digitalização do jornal atrasou.
A Folha de S.Paulo também assumiu seus erros ao apoiar a repressão, mas não o fez com a desinibição e candidez do concorrente carioca. ainda pode fazê-lo.
Tão importante quanto essas duas páginas históricas é o discreto comunicado da holding no caderno de Economia anunciando um compromisso com o CADE para evitar praticas na captação de publicidade dos seus jornais que poderiam ser confundidas com dumping.
Esta primavera pode mudar o país. De verdade.
>> A Folha revelou no sábado (31/8) a identidade do misterioso “Senhor X” que em 1997 forneceu gravações de fitas que comprovavam a compra de votos no Congresso para garantir a reeleição de FHC. A publicação das gravações sem qualquer investigação do jornal criou a expressão “jornalismo fiteiro”. Como o nome do autor das gravações está mencionado num livro recém-lançado, a Folha considerou caduco o acordo para manter o anonimato do “Senhor X”. agora falta decidir que denúncias anônimas só podem ser publicadas depois de investigadas.
>> Primeira declaração de guerra transmitida pelo Youtube. Outro sinal dos tempos: o presidente Barack Obama só dará o sinal para o ataque à Síria quando o Congresso dos EUA o autorizar, e o Congresso ainda está em recesso. Esta é uma guerra que ninguém quer começar, sobretudo o presidente Obama, que há dois anos reluta em envolver-se na guerra civil síria. A imprensa internacional, presa aos fatos, não consegue completar as lacunas do noticiário com análises. Na véspera de guerras, as análises podem mudar o curso dos acontecimentos.