É difícil para um profissional do Direito resistir à tentação de escrever sobre a capa da última edição de Veja (nº 2022, de 22/8/2007), que traz quatro ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) – Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio e Gilmar Mendes – em fotos que revelam expressões graves, sisudas, preocupadas, sobre um título quase sensacionalista: ‘Medo no Supremo’.
Devo dizer que minha resistência em particular tem um motivo. Na última vez em que observei, neste espaço, os comentários dos leitores foram azedos, grosseiros e ignorantes, talvez porque, acostumado à liberdade, este pobre observador não tenha poupado o governo de críticas. Além disso, elogiei a imprensa – pecado nefando! Desgostei-me. Afinal, quem lê o Observatório? Para que leitores escrevemos nós, colaboradores voluntários deste projeto de controle social e pluralista da mídia?
Em todo caso, a matéria de Veja desafiou-me e cá estou. Primeiro, abri a revista e lá não encontrei notícias ou análises que justificassem a capa. Apenas a velharia de supostos grampos no Supremo, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ), requentada com declarações de um único ministro que diz ter certeza de que foi grampeado (Gilmar Mendes), num episódio, aliás, divulgado pela mídia à época. De resto, a reportagem ouviu o relato de Sepúlveda, que foi vítima de vazamento de grampos legítimos (também divulgados à época), de Marco Aurélio e Carlos Britto, que tomam em seus diálogos telefônicos alguns cuidados ensinados em qualquer curso de iniciação para magistrados, e de Celso de Mello, que nem mesmo fala ao telefone, mas quis expressar sua indignação.
Assalto e furto
Veja reconhece que ouviu apenas sete dos onze ministros; e que dois dos sete ouvidos não têm medo de grampos. Logo, cinco ministros disseram temer por sua privacidade ao telefone, número que, segundo a página da revista na internet, teria subido para seis, com o ministro Joaquim Barbosa, relator do processo do mensalão, em declarações à Folha de S.Paulo no domingo (19/8). Apesar de Barbosa haver dito à Folha que não dispunha de ‘nenhum elemento para afirmar que possa ter acontecido ou esteja acontecendo’ o grampo em suas linhas.
Pode-se dizer que a existência de cinco ou seis ministros do STF com medo de escutas ilegais já é uma notícia. Em resposta a esse argumento, bastaria lembrar que neste ano dois ministros foram assaltados – isso mesmo, assaltados – em veículos oficiais no Rio de Janeiro. Aliás, os bandidos levaram o próprio carro em que estavam Gilmar Mendes e Ellen Gracie, pertencente ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Algum tempo antes o ministro Marco Aurélio teve seu relógio surrupiado no aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Seria notícia para a capa de Veja o fato de que ministros do Supremo têm medo de assalto?
Grampos não confirmados
Ainda em defesa da reportagem, Veja poderia afirmar que, ao contrário dos roubos, os grampos ilegais em geral são feitos por pessoas ligadas à polícia ou a órgãos de inteligência, com intenções obscuras, o que tornaria mais grave e digno de registro jornalístico o medo dos ministros. Ocorre que o medo é sempre e apenas medo. Pode ser justificado, ou não. Medo de grampo, no Brasil, toda autoridade que fala ao telefone tem. Diziam que o ex-ministro José Dirceu, quando ainda despachava no Palácio do Planalto, ao lado do presidente da República, usava mil e um artifícios para despistar curiosos que estivessem na linha. Outros ministros, juízes, procuradores e delegados também são cautelosos no uso de telefones. Não consta que Veja tenha dado uma capa sobre isso.
Não deixa de ser curioso observar que, em dado momento da reportagem sobre o medo de grampo no Supremo, a revista deriva para críticas às escutas telefônicas legítimas realizadas pela Polícia Federal (PF) e ao trabalho de rastreamento de grampos ilegais nos tribunais feito igualmente pela PF. Há relatos de conversas perdidas por ‘problemas técnicos’, de diálogos que teriam durado mais tempo do que o afirmado pela polícia e, claro, de vazamentos seletivos para a imprensa. A revista ouviu Ricardo Molina, perito ligado à Unicamp que costuma ser contratado em disputas judiciais e dono de uma empresa de segurança que assegura ter encontrado vestígios de grampos nos telefones de ministros do TSE – não confirmados pela PF.
Incompetência improvável
Essa obsessão pelo trabalho da PF faz sentido. Ao ler a matéria com mais cuidado, tem-se a impressão – correta ou não – de que a revista foi portadora de um recado da toga e, talvez, do ministro da Justiça a um grupo da Polícia Federal identificado apenas como ‘banda podre’. Isso tudo às vésperas da decisão do Supremo sobre a acusação dos quarenta do mensalão. A revista e suas fontes talvez saibam a quem se dirigia a mensagem; os verdadeiros destinatários também. É possível que o timing seja relevante por algum motivo não revelado. Agora, é certo que o alvo de Veja foi a PF – ou, melhor, alguém dentro da PF.
Sim, mas como fica o público nessa história? Se minha hipótese estiver correta, os leitores de Veja permanecem desinformados, vítimas de um jogo de poder em que a imprensa se deixa usar por autoridades para dissuadir uma etérea ‘banda podre’ da PF num momento politicamente delicado; a revista teria o dever, nesse caso, de abrir todo o jogo, seja ele qual for. Agora, se a teoria for equivocada, então ou a reportagem de Veja foi apenas ruim, fria, abstrata, sem nenhum atributo que justificasse a capa, ou o jogo era outro, que em minha ignorância não consegui entender. Infelizmente, não acredito muito na incompetência de Veja. A minha é mais plausível.
******
Procurador da República, São José dos Campos, SP