Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Por trás do jornal

A edição de sexta-feira (22/5) de O Liberal publica foto em bom tamanho do depoimento que o presidente da Construtora Camargo Corrêa prestou na CPI da Petrobrás da Câmara Federal. A matéria vinculada à foto não trata desse fato, que é de dois dias atrás. Trata da prisão do empresário Milton Pacovitch, apontado como o elo entre a diretoria de serviços da estatal, de onde saiu parte do dinheiro (6,2 bilhões de reais) desviado para o pagamento de propina, e o Partido dos Trabalhadores.

A legenda da fotografia informa que Pascowitch está à direita, ao lado do deputado petista Luiz Sérgio, do PT. O personagem registrado pela imagem é Dalton dos Santos Avancini, presidente da Camargo. Não é preciso conhecê-lo para o identificar: à sua frente está uma placa legível com o nome dele. Quem escreveu a legenda não viu?

Não é só esse erro que compromete a credibilidade da matéria. No texto é dito que Pascowitch “deve chegar à carceragem da PF na tarde desta quinta”. Como o jornal foi às ruas no dia seguinte, a conclusão é óbvia: o autor do texto o copiou da internet. Nem se deu ao trabalho de ajustar a informação, publicada já desatualizada.

Erros assim se multiplicam nas edições diárias não só do jornal dos Maioranas, mas em boa parte da imprensa nacional. Os jornalistas parecem estar cada vez menos atentos e mais desinteressados pelo material que produzem ou que passa pelas suas mãos. O leitor constata a queda da qualidade do produto e recebe com ceticismo as informações. Esse estado de espírito contribui bastante para agravar a crise maior dos jornais impressos em papel. Fica inevitável o círculo vicioso que ameaça a vida das publicações.

O grande jornalista K. S. Karol observou, numa visita à fábrica da Fiat instalada na então União Soviética, bem antes de Gorbachov, que a produtividade do operário russo era muito inferior à do trabalhador de Turim, sede da fabricante italiana de automóveis. Mas não embarcou nas explicações simples das visitas rápidas. Aprofundando a investigação, percebeu que, ao reduzir sua produtividade intencionalmente, o operário russo protestava sutilmente contra o governo totalitário. Não queria se expor a uma punição, mas não estava nada satisfeito.

Lembrei dessa situação enquanto lia O Liberal. Achei que o paralelismo ajuda a compreender melhor tantos erros. Por trás deles há um profissional explorado, descontente e ofendido. Pena que talvez o protesto seja infrutífero, além de imperceptível.

Sangria

Diário do Pará voltou a usar a tarja eletrônica para não identificar as ainda abundantes fotos de cadáveres que publica diariamente no seu suplemento de polícia. Interrompeu, mais uma vez, a prática abusiva das fotografias de cara limpa. Não é muito, mas é alguma coisa.

Gazua impressa

O “Repórter 70”, a principal coluna de O Liberal, deu uma aula, na edição de domingo (17/5), sobre o antijornalismo. Ou como o jornalismo se torna um instrumento de negócio comercial ou de pressão dirigida para fins deletérios, quando não escusos. Nesse dia, o de maior tiragem e leitura da imprensa, várias notas eram autênticos balões de ensaio dos donos, ou do maior dos donos. Se não estivesse repassando recados de fontes diversas.

A coluna abre com duas notas sobre um tenente-coronel da Polícia Militar, lotado no gabinete militar do Tribunal de Contas do Estado, “que está num pé e noutro para ser promovido”. A coluna garante que a folha corrida (ao invés de currículo) do pretendente não o recomenda. Lembra que o oficial “se associou a um dos prodígios da família Carepa- Santos Carepa, irmão mais novo da então governadora”.

A empresa que formaram ganhou “muito dinheiro” prestando serviços à Secretaria de Educação do Estado, tornando-se “milionários”. Mas quando foi cobrar sua parte ao se separar da esposa, “deu com a cara na porta”. Foi ameaçado de ter “sua infame conduta exposta ao distinto público. Ficou pobre. O coronel, esperto que só, ficou calado. E rico”.

O nome do tenente-coronel da PM, informação essencial para a prática de jornalismo, o Repórter 70 não deu. Essa omissão estimula interpretações atravessadas sobre a intenção das notas: seria para algum acerto fora das atenções do público?

Problema particular à parte, o do fim da sociedade conjugal. a informação a jato devia ter feito o jornal ir além da coluna e apurar devidamente se houve enriquecimento ilícito da dupla, talvez possibilitado pela relação de parentesco com a governadora Ana Júlia Carepa, e a condição do militar para ser promovido e ocupar o cargo público no TCE.

Nada disso parece interessar a O Liberal. O jornal pode ser apontado como interessado em transformar seus textos em gazua – sabe-se lá para qual fim ou personagem.

O assunto seguinte da coluna é ainda mais espantoso. Por isso a nota de abertura merece ser reproduzida na íntegra. Diz:

“Ganhar dinheiro é bom e todo mundo gosta, mas dois grandes empresários paraenses se deram mal em cassinos de Las Vegas. Na ponta do lápis – em Belém todo mundo está careca de saber do infortúnio – cada um perdeu mais de R$ 100 milhões! Como em Vegas o buraco é mais embaixo, cada um ficou devendo cerca de R$ 3 milhões, um deles está proibido de entrar nos Estados Unidos e o outro, coitado, a caminho disso”.

Logo em seguida a coluna dá a pista. Um dos jogadores é empresário da construção civil, que “ganha dinheiro aos tubos com o programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal”. O outro “tem remédio para cuidar da própria dor de cabeça”.

Aí emerge a motivação da coluna para o ataque: “Juntos, eles bancaram a ‘contratação’ do radialista Jeferson Lima para a campanha de Helder Barbalho ao governo, um deles com o apoio de um deputado federal que conhece tudo sobre invasão de terras e levou 20% do bolo”.

O principal executivo do jornal, Romulo Maiorana Júnior, pode falar de cátedra sobre o assunto. Frequentemente está em Las Vegas, com sua entourage, para jogar, transportando-se – e aos seus – em jatinho executivo. como o que a Receita Federal apreendeu sob suspeita de contrabando. O Liberal nunca publicou quanto Júnior ganhou ou perdeu nas suas incursões à mesa verde. É assunto de foro íntimo.

Mas quando dois cidadãos perdem 200 milhões de reais num cassino no exterior, a questão passa a ser matéria de ordem pública. É dever da Receita Federal dar uma olhada na declaração de rendimentos dos dois cidadãos, que dispuseram, à vista, de R$ 197 milhões, já que, segundo a coluna, um deles ficou devendo R$ 3 milhões, o que o inabilita a voltar aos Estados Unidos, exceto se saldar a dívida. Sem isso, poderá ser preso. Afinal, quem mais arrecada em Las Vegas é o governo americano.

Por ser matéria de ordem pública, o jornal devia dar os nomes dos cidadãos. Não só numa coluna: em reportagem. Quantos cidadãos do mundo estão em condições de perder mais de 30 milhões de dólares num cassino? Sim, porque para sentar à mesa da roleta ou de outro jogo precisam apresentar suas armas – ou seja, o peso em ouro.

A obrigação de dar nomes aos bois poderia ser ainda mais fácil porque o redator da coluna garante que todos “estão carecas de saber” (conforme o estilo da casa) dos nomes. Um deles seria empresário da construção civil, de uma empresa pouco conhecida, e outro do setor farmacêutico. Mas podem ser e não ser. A questão dispensa balões de ensaios. Requer seriedade e honestidade, condições que parecem faltar à coluna e ao jornal.

Mas já que a coluna se transformou em gazua para o dono do jornal exercer um munus público que não lhe foi conferido, nomeando ou demitindo pessoas, bajulando ou caluniando autoridades, a Receita Federal podia solicitar a ajuda de O Liberal para melhor cumprir o seu dever.

***

Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)