Nas décadas de 1950 e 60, quando o regime presidencialista mexicano instalado pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI) para pacificar o país depois da Revolução de 1910 estava no auge da violência e da repressão, um jornalista jovem, ousado e iconoclasta, José Pagés Llergo, demitido depois de cinco anos da chefia da revista Hoy, fundou, em junho de 1953, o semanário político Siempre.
Ele dirigiu a revista até sua morte, em 1989, quando o comando da publicação passou a sua filha Beatriz. Nesses 36 anos de exercício apaixonado do oficio, não poucas vezes num saudável tom panfletário e provocador, Pagés Llergo formou e dirigiu uma brilhante geração de jornalistas e escritores, de quem ele só exigia um requisito: que fossem do ramo, que soubessem escrever.
O resto era com ele, que defendia bravamente, naqueles tempos de sombria opressão, seu direito de dizer a verdade. ‘Uma verdade’, lembra agora a filha Beatriz, ‘dita com liberdade e sustentada no elevado valor da justiça. No quarto centenário do El Quijote de la Mancha, aproveitamos para render uma homenagem a outro grande Quixote, José Pagés Llergo, pois ambos, em sua época e em seu momento, perceberam a imprescindível necessidade de colocar o mundo a beber nas águas pristinas da humanização.’
Formato grande como o da Life ou do nosso extinto O Cruzeiro, páginas em tom marrom ou sépia, capa ilustrada com provocadoras charges políticas, Siempre, de linha editorial progressista e sobretudo pluralista, à maneira inteligente de seu fundador driblava a severa censura sobre dos meios de comunicação exercida pelos poderosos de plantão.
O solo e a semente
Nas colunas da revista se podia ler todo tipo de opinião, comentário, reportagem, com destaque para a arte e a cultura mexicanas. Em suas páginas de cultura, a propósito, convertidas no histórico suplemento ‘La Cultura en México’, surgiram grandes nomes da literatura mexicana, entre eles os do ensaísta Carlos Monsiváis e a narradora Christina Pacheco, os dois também jornalistas e ainda hoje em produtiva atividade.
Ao assumir a direção da revista, a filha Beatriz reduziu o tamanho da publicação – agora formato Veja ou Time –, tratou de adaptar-se às inevitáveis novidades gráficas geradas pela internet e encontrou forte concorrência semanal de novas publicações do gênero, especialmente a combativa Proceso, fundada em 1976, e, nos últimos tempos, também Cambio, Crisis, Milenio e Vértigo.
A gradual abertura política do regime mexicano de dez anos para cá contribuiu para tirar certo brilho de Siempre, ainda hoje séria e respeitada, mas sem os encantos gloriosos e desafiadores do passado. Mas a revista mantém vigentes os sólidos princípios jornalísticos de seu fundador, expressos no Premio de Jornalismo José Pagés Llergo, dado há onze anos às melhores cabeças da comunicação no país.
Semana passada, ao entregar esses prêmios, Beatriz Pagés Llergo, uma mulher de gestos sóbrios e opiniões firmes, surpreendeu os jornalistas ao anunciar a criação de um novo prêmio dentro do prêmio maior, o de Humanismo Jovem, dirigido aos estudantes de jornalismo, ‘pois os universitários são a terra, o solo fértil onde melhor germinar essa semente’, justificou. ‘Para eles precisamos fazer outro tipo de jornalismo, somos obrigados a mudar a forma de comunicar.’
Silêncio eloqüente
Os trechos seguintes do discurso de Beatriz, depois publicado como editorial de Siempre, têm tudo para ajustar-se ao atual papel da imprensa brasileira e à própria situação política do país:
‘Por que outro tipo de jornalismo? Porque o que estamos fazendo não serve ao país, nem à liberdade, nem à inteligencia, nem à civilidade, nem à democracia. Não serve porque os meios de comunicação são hoje a nova ditadura. A maior contradição, o maior absurdo que vivemos nestes tempos, é pretender ampliar as liberdades políticas a partir de um modelo midiático absolutista, intolerante, que vive do escândalo e promove a satanização.
Uma pergunta paira no ar e sem dúvida diz respeito aos comunicadores: qual será nosso papel no processo eleitoral de 2006? A quem vamos servir, de que lado estaremos? Não são perguntas ociosas…
Como espécie e grêmio, temos cometido equívocos. Vale a pena então perguntar: que tanta responsabilidade histórica teremos na hora de pavimentar o caminho, em 2006, para o homem errado? E não venham com essa conversa de que os meios de comunicação só refletem a realidade, que são neutros. Mais que espelhos, são armas, muitas vezes – a maioria das vezes – disparadas sem dar oportunidade a que a vítima se defenda. Nós nos erigimos em juizes inquisidores. Temos violentado os princípios elementares dos direitos humanos. Nos achamos – a maioria das vezes – infalíveis. Não vamos cometer o erro de exterminar a quem pode exercer o poder como estadista e levar a cadeira presidencial um falso messias ou a quem somente poderia repetir as fórmulas de uma mudança abortada.
Como o político, como o cidadão, compartilhamos obrigações. A nossa é exercer, na plenitude, a liberdade de expressão, só que esta, junto com a democracia, tem que ser rediscutida. Se a democracia não é, nem pode ser sinônimo de anarquia, de fraqueza governamental ou predomínio da ilegalidade, a liberdade de expressão tampouco pode ser sinônimo do triunfo do mercado sobre a razão.’
Circulada a revista semana passada, reinou a mais fria indiferença e absoluto silêncio na imprensa mexicana sobre a matéria de capa intitulada ‘Meios de comunicação: a nova ditadura’.
******
Jornalista e escritor brasileiro radicado na Cidade do México