Dois assuntos aparentemente sem conexão entre si, tratados pelos jornais nas edições de quarta-feira (14/1), criam a oportunidade para uma reflexão sobre os grandes desafios das empresas de comunicação neste início de século – e o futuro do jornalismo. Numa delas, afirma-se que o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, pretende elevar a taxação do imposto de renda para prestadores de serviços que recebem como pessoas jurídicas. Na outra, os jornais traçam o perfil da pesquisadora e professora Ivana Bentes, nomeada secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura.
Aparentemente, os dois temas não têm nada em comum. No entanto, eles tocam num ponto sensível: a crescente dificuldade da mídia tradicional em manter redações amplas e diversificadas o suficiente para assegurar alguma qualidade ao produto jornalístico e a necessidade de um novo modelo de negócio para o jornalismo. Essa questão está relacionada diretamente à intenção anunciada pelo ministro da Fazenda, porque em muitas empresas a solução para baixar o custo tem sido substituir as relações trabalhistas por contratos de prestação de serviços sem vínculo empregatício.
A coerção de jornalistas a se tornarem “microempresários” produziu uma geração de profissionais em situação vulnerável: muitos jornalistas altamente qualificados e com grande experiência estão desempregados, coagidos a barganhar trabalhos eventuais a preços vis, e sem as reservas garantidas pela legislação que protege o trabalhador formal. Em razão dessa estratégia das empresas, aumentou o número de ações trabalhistas no setor de comunicação, cujo julgamento os empregadores costumam protelar por muitos anos.
Se ocorrer a taxação maior do imposto de renda sobre prestadores de serviços que atuam sem carteira assinada, o custo de manutenção de algumas redações pode subir exponencialmente. Como nem todos os profissionais poderão absorver uma alíquota de 27,5% em vez dos atuais 4% ou 4,5% sobre seus rendimentos, essa despesa terá que ser compartilhada com os contratantes, o que certamente irá produzir conflitos.
Coletivos de comunicação
Por outro lado, a nomeação de Ivana Bentes pode levar a uma extensão dos pontos de cultura para a atividade jornalística, com potencial para produzir uma grande mudança no ambiente midiático.
Organizados a partir do Programa Cultura Viva, criado em 2004 pelo então ministro Gilberto Gil, os pontos de cultura, funcionando como coletivos financiados pelo poder público por meio de editais simples, se tornaram conhecidos por atuarem como catalisadores das manifestações que paralisaram as grandes cidades do país em 2013.
O Programa Cultura Viva, que foi negligenciado no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, tem a ver com as discussões sobre o futuro do jornalismo. Uma perspectiva do que pode vir a acontecer pode ser avaliada pelo exame da atividade dos coletivos chamados de Mídia Ninja, que a partir de junho de 2013 passaram a acompanhar as passeatas de protesto, oferecendo uma cobertura direta e sem edições dos acontecimentos. Foram as imagens produzidas por esses jornalistas que permitiram expor a violência policial e, por tabela, revelar a contaminação das manifestações por adeptos do vandalismo, conhecidos como “black blocs”.
A nomeação de Ivana Bentes reconduz ao Ministério da Cultura a política de valorização dos coletivos produtores de iniciativas culturais. Graças aos editais, surgiram em locais distantes dos grandes centros, durante a década passada, milhares de iniciativas que têm ajudado a recuperar certas práticas tradicionais, como o cateretê no interior paulista, e estimular festivais de música, e ações culturais inovadoras, como projetos de videoarte, grafiti e animação.
Um programa com as mesmas características poderá financiar coletivos no campo do jornalismo, inicialmente associados aos coletivos de cultura, como foi na origem da Mídia Ninja, com potencial para se conectar a movimentos comunitários e funcionar como divulgadores de reivindicações locais ou regionais. A relação desses coletivos com o jornalismo ativista foi abordada por pesquisadores, como no ensaio “Jornalismo Século XXI – o modelo #MídiaNinja”, da jornalista Elizabeth Lorenzotti (ver aqui).
Ao tratar dos dois assuntos de forma burocrática, a imprensa certamente não viu essas possibilidades. A taxação do trabalho em relação precária será um problema para a mídia tradicional. Os coletivos de comunicação podem ser uma esperança para o jornalismo.